FEMINISMOZ

Micky & Vanusa

Considero-me uma pessoa LGBT, com expressões de géneros masculinas, identidade de género feminina, orientação sexual lésbica. Nos momentos livres, gosto de ler livros de romance, que ajudam a fortalecer laços de amizades entre pessoas que me rodeiam e, principalmente no meu casamento, ajudam muito no que tange a respeito mútuo entre o casal. Gosto de dançar, porém a minha dança preferida é Kizomba. Manter boas amizades e conhecer novas pessoas que respeitam as diversidades das pessoas LGBT, pessoas engajadas na causa LGBT. Gosto de escutar música. Os meus Ídolos são o James Blunt, o John Legend, o Richard Bona e para finalizar os irmãos Calemas. Tenho escutado outras músicas tipo Barry White, mas sou mais apaixonada pelos ídolos mencionados acima.

A Micky Beula tem uma frase de militância para o seu dia-a-dia que vence qualquer tipo de discriminação, preconceito e estigma: Meu corpo, minhas regra e com a militância conquisto a igualdade cada vez mais.

A Micky Beula de hoje não é a mesma de ontem. Em todas as etapas da minha vida, a trajectória não foi nada fácil. Foi com muitas dificuldades que hoje me tornei esta pessoa activista social, líder e mais alguma coisa. Primeiro dizer que fiz de tudo nesta vida para nunca fraquejar, nunca tive a consciência de desistir, mesmo sendo difícil. Nunca desisti, sempre corri atrás dos meus sonhos. Quando a pessoa luta, corre atrás, demonstra interesse em aprender, sempre consegue. E quando tem pessoas que a apoiam, carrega consigo um sentimento de alívio e, perante a situação acima detalhada, se a pessoa não é forte o suficiente, desiste e vem o pensamento de suicídio, porque a pressão familiar é muito forte e, dentro da família, se não existe ninguém para te apoiar, desistes de todos os sonhos pelo simples facto de seres uma pessoa LGBT.

Vou partilhar a minha experiência sobre como sobrevivi na minha família até hoje. Antes mesmo de me tornar activista social, jovem adolescente com muitos sonhos privatizados pelo simples facto de me vestir com roupas masculinas, assim diz a sociedade. Bom, a minha mãe, os meus irmãos até gostavam do meu jeito de vestir, mas nada podiam fazer em relação à fúria do meu pai. Este zangava com tudo e com todos que me apoiavam, até porque nunca sentei com a minha família para falar sobre a minha orientação sexual. Se calhar, tive a sorte de ter irmãs que gostavam de ler muito revistas, entendia melhor nas suas leituras o que é ser uma mulher lésbica, tinha este sentimento de ser uma pessoa igual mas diferente, mas não sabia expressar ou interpretar o que é ser lésbica e tive esta sorte das minhas irmãs explicarem o significado de ser uma pessoa lésbica. O bom disso tudo é que sempre fui uma pessoa lúcida e consciente sobre a minha pessoa, sempre esteve claro em mim que não sou uma pessoa doente, que era diferente mas igual às outras meninas da minha infância. Isso sempre esteve consciente em mim e com este braço de apoio das minhas irmãs, foi uma bênção para mim, porque o meu pai não era fácil de aturar, em relação às exigência que fazia sobre a minha pessoa.

 Não vou detalhar o que passei, mas afirmo que passei por maus momentos, que transformei hoje em coisas boas porque não seria possível viver com isso hoje. Considero o sofrimento que passei como uma ferramenta da pessoa líder que hoje sou, os bloqueios que tive do meu pai hoje fizeram de mim uma pessoa forte. Como dizia anteriormente, a pressão familiar muda o ser humano, isto é, pode mudar positivamente ou negativamente, e eu mudei positivamente porque a minha entrega contou muito neste processo de militância, mas hoje agradeço à minha família pela força, apoio que sempre me deram. Enfrentava o meu pai graças aos meus irmãos. Para que percebam melhor, por enfrentar o meu pai, refiro-me não do tipo dente por dente e olho por olho. Enfrentava de forma respeitosa, sensibilizava-o sobre a pessoa que sou. Passaram-se muitos anos, mas nunca desisti. A Micky Beula na altura não tinha o conhecimento que tem hoje sobre pessoas LGBT, mas porque a minha preocupação maior era tornar-me uma pessoa activista social. Entreguei-me à causa LGBT e fui-me apercebendo que existem pessoas que nascem líderes e, com formações e capacitações, vão-se tornando líderes completas por nascença e pela formação. Eu me considero esta pessoa que nasceu líder, isto para dizer que faz parte da minha trajectória, até hoje que sou defensora dos direitos das pessoas LGBT.

Hoje, devido à minha entrega, estou preparada para lidar com tudo e com todos, quer conflitos internos, comunitários. Isso graças à minha total entrega e ao apoio das pessoas acima mencionadas. A oportunidade que a Lambda me deu reforçou muito o meu conhecimento sobre assuntos ligados a pessoas LGBT. E esta satisfação da minha pessoa não termina aqui. Porque sou um ser com sentimento, conheci uma mulher com a qual jogava futebol e, porque somos pessoas que tínhamos os mesmos sonhos, expressamos os nossos sentimento uma para a outra, o que resultou em um casamento tradicional. Queríamos sim um casamento civil, mas isso no nosso país não é possível devido à não aceitação de casamentos de pessoas do mesmo sexo. Mas porque o amor não é um simples papel de registo civil que define, assim o casal Micky Beula e Vanusa Abreu realizou o matrimónio à moda tradicional no dia 29 de outubro de 2016. Fazemos hoje 15 anos juntas e 4 anos de casamento à moda tradicional. O nosso amor apenas precisava do testemunho das nossas famílias e amigos e assim aconteceu com sucesso. Hoje somos uma família feliz com três filhos, dois rapazes e uma menina. Cláudio, o mais velho com 22 anos hoje, Tiago com 17 anos e Bianca com 11 anos. Confesso que não foi fácil sensibilizar os filhos a respeitar a relação das mães, foi difícil, mas foi possível até porque estamos conscientes que filho não faz a família, mas sim complementa a família. Existem estereótipos à volta de casais homossexuais, a sociedade descreve que um casal de pessoas do mesmo sexo não é família, consideram como família casais de sexo oposto e descrevem também que casais do mesmo sexo não podem ter filhos. O casal Micky Beula e Vanusa Abreu veio desmentir os dizeres da sociedade acima, descrevendo a sua história.

Somente o casal decide se quer ter filhos ou não, independentemente da sua orientação sexual. Estamos preparadas para receber as descargas da sociedade sobre as diversidades sexuais da comunidade LGBT, porque muitos têm fraco conhecimento sobre pessoas LGBT. Sabemos que a sociedade não está preparada para aceitar pessoas homossexuais, mas estamos dispostas a lutar pela causa de forma civilizada e porque, para o estado moçambicano, ser homossexual não é crime. Com o esforço da Lambda, em 2010 a homossexualidade foi retirada da lista de crimes e hoje a homossexualidade não é vista como crime. Mais uma luta da Lambda que teve sucesso. No que tange às conquistas, são várias. Eu, como pessoa, tive várias conquistas e, como profissional, os feitos ditam pelo historial acima citado.

O texto acima revela as emoções e superações. O casamento foi um momento emocionante, onde juntamos as duas famílias, amigos e vizinhos. Superações foram várias: o meu pai, que não aceitava que a filha fosse homossexual e hoje a respeita. São filhos a quem se aponta o dedo por terem duas mães e a sociedade que te exclui em muitas coisas. Ainda que subescrevo que é uma superação ainda em curso, porque ainda sentimos pressão da sociedade. Mas porque queremos vencer, sempre tapamos com pano preto e seguimos com o pano cor-de- rosa e isto é uma experiência que resulta.

Hoje continuo sendo activista social, ocupando o cargo de Oficial de Advocacia de Género e Direitos Humanos na Lambda, em parceria com a FDC no projecto Viva +.

O que mais me tocou neste processo da luta pela defesa dos direitos das mulheres é o engajamento que as mesmas têm sobre a luta dos seus direitos, assim como a empatia que têm com os direitos das mulheres lésbicas. O meu testemunho sobre o engajamento das mulheres em vários processos, e a entrega de todas com o apoio da grande mulher Heike, esta que empoderou muitas mulheres em matéria de liderança. Desde já, agradeço à Lambda e à Heike pelas formações e capacitações que tornaram a mim e às outras mulheres líderes, activistas sociais.

Sinto-me feliz e realizada para mais uma batalha. As sensibilizações e debates comunitários, assim como os eventos públicos com a temática LGBT, foram as melhores armas usadas para educar a sociedade a respeitar os direitos humanos das pessoas LGBT, porque as dinâmicas, ou seja, as estratégias usadas para informar a sociedade sobre a existência das pessoas LGBT eram fortes e directas, através de peças teatrais com a temática LGBT, eventos públicos, isto é, passarelas organizadas pelos próprios membros da comunidade, com vista a educar e visibilizar a comunidade LGBT. Desta forma, disponibilizávamos informação abrangente e positiva sobre pessoas LGBT. Esta militância é alegria total para mim, saber que mais de 5000 mil pessoas foram sensibilizadas em matéria educativa sobre os direitos das pessoas LGBT em menos de 3 anos.

O que falta mudar é a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a auto-estima da mulher, reportar todos os casos de violência física e principalmente violência doméstica, capacitação em matérias de direitos humanos para todas mulheres, promoção de cargos de tomada de decisão equitativos, auto-reconhecimento das qualidades que a mulher tem no seio familiar e profissional e o direito da mulher ser chefe de família, porque é visto que a mulher não sabe que é chefe da família. Para tornar todos os sectores fortes, é preciso haver troca de experiência com regularidade entre os sectores parceiros, publicação de histórias de superação das mulheres, como forma de encorajarem outras organizações a trabalhar sobre esta temática, divulgar o trabalho das mulheres através dos média, redes sociais e entre outras redes que podem trazer a visibilidade da mulher.

A Micky Beula antes sonhava em dar volta ao mundo através de um cruzeiro, mas como o tempo muda, as coisas vão ficando cada vez mais diferentes e difíceis. Ainda tenho este sonho, mas agora o meu sonho principal tem mais a ver com assuntos familiares, como terminar a minha casa e construir um restaurante com decorações de cores do amor, que são as cores LGBT.

NB: Não escrevi a idade do casal porque não importa, importam os resultados, as conquistas, os desafios, as emoções e os passos subsequentes.

19 de Junho de 2020

Micky Beula


Micky Beula é uma jovem moçambicana e activista social dos direitos das pessoas LGBT desde os seus 16 anos de idade, antes mesmo da criação da única organização em Moçambique que defende os direitos das pessoas LGBT, a Lambda. Ela trabalha nesta ONG e é estudante de Ciências Jurídicas e Investigação Criminal.

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