FEMINISMOZ

Feminismos e Mulheres que Lutam por Direitos: uma breve história moçambicana

Catarina Casimiro Trindade e Solange Rocha
Maputo, 4 de Julho 2020

Identificar-se como uma feminista moçambicana é um processo em crescimento nos últimos 10 anos, muito por influência da visibilidade e do trabalho de algumas organizações e activistas de referência que se foram posicionando e se assumindo publicamente como feministas, mudando os seus estatutos e redefinindo o seu significado no contexto moçambicano.

As primeiras organizações/redes que se definiram publicamente como feministas foram a Mulher e Lei na África Austral Moçambique (WLSA) e o Fórum Mulher (FM) e, mais recentemente, o Movimento das Jovens Feministas de Moçambique (MOVFEMME) e a Associação Sócio Cultural Horizonte Azul (ASCHA). Vemos surgir, assim, uma nova fase do feminismo. Um feminismo cada vez mais fora dos muros/desvinculado das organizações, das academias e que está nas ruas e nas comunidades de forma “espontânea” e “popular”. Que vem de movimentos e colectivos de base, com forte ligação às artes e às redes sociais. Uma fase onde a identidade feminista passa a ser reconhecida por mulheres dos mais variados tipos e pensamentos, que questionam os padrões heterossexual/cissexual, de corpo e sexualidade e que reflectem cada vez mais sobre o que significa ser feminista no contexto moçambicano e africano (ROCHA ET AT, 2019).

Nos últimos anos, temos vindo a acompanhar o surgimento de redes, fóruns e movimentos que se identificam com o feminismo e que estão localizados para além da capital e com uma maior diversidade de sujeitos políticos (jovens mulheres, mulheres portadoras de deficiências, rurais e camponesas, lésbicas, entre outros). Estes novos colectivos dialogam e negociam agendas e visibilidade com os outros existentes, principalmente os urbanos e da capital, e têm operado mudanças profundas no sistema patriarcal moçambicano, além de uma maior visibilidade dos seus sujeitos políticos e das suas demandas.

São exemplo disso a criação de redes provinciais como o Núcleo das Associações Femininas da Zambézia (NAFEZA), o Núcleo das Associações Femininas de Tete (NAFET), o Fórum das Organizações Femininas do Niassa (FOFEN) e o Fórum das Associações Femininas de Inhambane (FAFI) ou de colectivos e organizações fora da capital, como é o caso da organização Levanta-te Mulher e Siga o Seu Caminho (LeMuSiCa), da Associação Moçambicana de Mulheres e Apoio à Rapariga (Ophenta), da Associação Moçambicana Mulher e Educação (AMME), da Associação das Mulheres para a Promoção dos Direitos Humanos e Cidadania (AMUDHF), da Associação de Mulheres Para Promoção do Desenvolvimento Comunitário (AMPDC) e o Grupo de Mulheres de Partilha de Ideias de Sofala (GMPIS). Em relação a este último, é de destacar o trabalho de mobilização e solidariedade que as mulheres têm movimentado, principalmente em relação a desastres naturais que afectaram sobretudo mulheres e crianças (como foi o caso dos ciclones Idai e Kennedy, no centro do país). Outro exemplo é a realização de acampamentos solidários de mulheres, que promovem uma participação activa das mulheres e raparigas nos processos de paz, segurança e recuperação económica em Moçambique. Os acampamentos enfocam sobre género e empoderamento sócio-económico das mulheres para fortalecê-las individualmente e colectivamente e influenciar a advocacia no desenvolvimento de políticas, programas e legislação que melhor abordem os desafios enfrentados pelas mulheres e raparigas. Começaram a ser realizados em 2014 e seguiram-se em 2015, 2017, 2018 e 2019.

Historicamente, a palavra feminismo sempre esteve em disputa. Por um lado, percebida por activistas de forma negativa, como algo que vem de fora e que não faz parte da cultura do país. Por outro, como identidade de luta, considerando que Moçambique também é parte do sistema patriarcal. Isto levou a que, durante muito tempo, grande parte das organizações de mulheres e activistas pelos direitos das mulheres rejeitassem a identificação com o feminismo, mesmo partilhando visões e objectivos ligados ao que se entende como tal, preferindo colocar-se como defensoras dos direitos das mulheres e da igualdade de género. Neste sentido, se por um lado o entendimento do feminismo como estando associado à luta por direitos é narrativa e agenda de muitas organizações, por outro há ainda muito desconhecimento e resistência política, que se traduz na desqualificação das feministas e na essencialização do feminino (TRINDADE, 2020; ROCHA ET AL, 2019).

Ao mesmo tempo em que o feminismo tem uma trajectória conturbada, Moçambique é um dos países em África que mais avançou em termos de normas formais, políticas e leis ligadas aos direitos das mulheres e à igualdade de género. Em todos os domínios da vida pública, o governo tem formulado políticas e implementado estratégias voltadas para a promoção de relações de género mais igualitárias. Os inúmeros documentos internacionais ratificados orientam as leis e estratégias em Moçambique, desenhadas para favorecer o avanço da igualdade de género e direitos das mulheres, jovens e crianças. A criação dessas normas formais posiciona Moçambique nos marcadores internacionais de países com alto nível de inclusão de género (ROCHA ET AL, 2019).

Todos esses processos nacionais e internacionais – criação de políticas, planos e estratégias – aconteceram com forte presença do activismo das mulheres, organizadas em colectivos, redes e movimentos que actuam para transformar o quadro legal, aumentar o gozo de direitos e diminuir ou acabar com as desigualdades de género existentes. Isso é feito através do seu importante trabalho de lobby e advocacia, da produção de relatórios-sombra sobre a implementação de compromissos internacionais e regionais assumidos por Moçambique, do trabalho de investigação-acção – que em muito tem contribuído para um maior conhecimento e entendimento da situação das mulheres no país -, da produção de análises nos média sociais e tradicionais, dos documentos de posicionamento, diálogo com o governo e outros actores e marchas e/ou manifestações e posicionamentos públicos. Ao posicionarem-se desta forma, as mulheres colocam-se como agentes de transformação, para além da posição de vítimas, e reconfiguram a sua relação com o Estado (TAELA ET AL, 2019).

O número de organizações que se dedicam ao avanço dos direitos das mulheres e da igualdade de género tem aumentado consideravelmente nos últimos 25 anos. As primeiras organizações de mulheres começaram a surgir timidamente nos anos 1980, mas foi a partir de meados dos anos 1990 que se verificou um boom de organizações, principalmente depois da Conferência de Beijing, em 1995, que teve um forte protagonismo das lideranças feministas moçambicanas. Mais autónomas e sem depender de partidos políticos para elaborar as suas agendas e formas de actuação, estas organizações em muito se beneficiaram das mudanças políticas, sociais e económicas pelas quais o país passou, nomeadamente o processo de democratização do país e a aprovação da Constituição (1990), que adoptou o direito à livre associação (TRINDADE, 2020).

Os Acordos de Paz (1992) e a abertura do país às políticas do Banco Mundial (BM) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) levaram, por um lado, o país ao neoliberalismo e, por outro, possibilitaram um maior acesso a fontes de financiamento para a realização das actividades das organizações de cunho social. Ressalta-se que a ajuda humanitária, presente em todo o período das guerras que assolaram o país, deixou um legado complexo, que foi e ainda é fonte de recursos para as associações e ONGs, numa relação de interdependência. Isto também levou à entrada massiva de organizações internacionais de ajuda, que se tornaram parceiras e apoiadoras da autonomia e sustentabilidade das organizações.

As primeiras organizações de mulheres criadas no período anterior à independência do país –  ligadas à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), hoje partido no poder – foram a Liga Feminina de Moçambique (LIFEMO, 1962), o Destacamento Feminino (DF, 1965) e a Organização da Mulher Moçambicana (OMM, 1973). Já no período posterior à independência, começaram a surgir organizações de mulheres de tipo voluntário, associações com ou sem fins lucrativos e em áreas bastante diversas, como por exemplos a Associação Moçambicana de Defesa da Família (AMODEFA, 1989), a Associação de Mulheres Empresárias e Executivas (ACTIVA, 1990), a Associação Moçambicana para o Desenvolvimento Rural (AMRU, 1991), a Associação das Donas de Casa (ADOCA, 1992), a Associação para a Promoção do Desenvolvimento Económico e Sócio-Cultural da Mulher (MBEU) e a associação PROGRESSO (1991).  Ligado ao Departamento de Estudos da Mulher e Género (DEMEG), da Universidade Eduardo Mondlane, é criado em 1989 o projecto regional Woman and Law in Southern Africa Research Trust, onde se fizeram uma série de pesquisas para conhecer a situação da mulher em Moçambique. Este projecto sai da universidade e transforma-se em ONG em 2003, transformando-se em Women and Law in Southern Africa Research and Education Trust (WLSA Moçambique). São criadas, também, a associação Mulher, Lei e Desenvolvimento (MULEIDE, 1991) – a primeira associação moçambicana de divulgação e defesa dos direitos humanos das mulheres -, o Núcleo Mulher e Meio Ambiente (NUMMA, 1992) e o Fórum Mulher – Coordenação para a Mulher no Desenvolvimento (FM, 1993), rede criada como iniciativa de coordenação de uma série de projectos, actividades e organizações que trabalhavam na área de género e desenvolvimento (TRINDADE, 2020).

Deste modo, tem se vindo a assistir ao longo dos anos a um aumento de recursos, um maior compromisso com a agenda da igualdade de género, uma forte articulação, produção académica e movimentação social na construção de um feminismo moçambicano e africano, em diálogo com outros feminismos. Também o compromisso de assumir a coordenação internacional da Marcha Mundial de Mulheres trouxe novos posicionamentos políticos e novas disputas para construir um campo progressista, antipatriarcal e anticapitalista.

Seguramente, o campo de direitos que mais avançou com a advocacia dos colectivos feministas e pelos direitos das mulheres foi o da Violência Baseada no Género (VBG), bastante influenciado pela participação em Beijing e todos os compromissos que dali saíram. Uma das principais conquistas do movimento de mulheres foi, neste sentido, a aprovação da Lei Sobre a Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher em 2009, cujo processo teve início em 1996, com a criação da campanha Todos Contra a Violência (TCV). As relações e articulações entre academia, organizações de mulheres (nacionais e internacionais) e governo no que diz respeito aos processos de discussão, elaboração e aprovação de legislação para uma maior igualdade de género e direito das mulheres, resultaram em outras importantes conquistas de protecção dos direitos das mulheres, como é o caso da Lei de Terras (1997), da Lei da Família (2004), da Lei Contra o Tráfico e Abuso de Mulheres e Crianças (2008), da Lei Anti-discriminaçãção Contra Pessoas Vivendo Com o HIV e SIDA (2009), da revisão do Código Penal (2014), da revogação do Despacho 39 (2018) – que decretava a transferência compulsiva das raparigas grávidas na escola para o curso nocturno -, da Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras (2019), da nova Lei da Família (2019), da Lei das Sucessões (2019), entre outras.

Apesar da sua força e das inúmeras conquistas ao longo dos anos, o movimento de mulheres e feminista moçambicano enfrenta ainda vários obstáculos. Existe um quadro de políticas e legislação relativamente abrangente e progressivo, mas há ainda um grande deficit de regulamentação, orçamentação e implementação do mesmo. Isto se traduz num grande desfasamento entre, por lado, o que existe e, por outro, o conhecimento, acesso e gozo dos direitos, por parte das mulheres e raparigas.

Há ainda um longo caminho na luta pelos direitos das mulheres e pela igualdade de género e todas estas mobilizações têm contribuído poderosamente para as mudanças que têm acontecido. Mais mulheres ocupam postos de poder, têm maior acesso à educação, posicionam-se contra as uniões forçadas e as gravidezes prematuras, escolhem se, quando e como querem engravidar, falam aberta e publicamente sobre corpo e sexualidade nos meios de comunicação e redes sociais, que trazem uma visibilidade maior das agendas, demandas, lutas e vozes desses sujeitos políticos que sempre tiveram que lutar para ter as suas vozes ouvidas.

Referências Bibliográficas:

ROCHA, Solange, TAELA, Katia, JAIME, Unaiti. Linha de Base. Programa ALIADAS, Women’s Voices and Leadership. (2019).

TAELA, Katia, ROCHA, Solange, JAIME, Unaiti. Mapeamento Economia Política Feminista dos Direitos das Mulheres em Moçambique. Programa ALIADAS, Voz e Liderança das Mulheres, CESC. (2019)

TRINDADE, Catarina Casimiro. “Tem vida esta coisa!”: Construção e actualização do campo em torno dos direitos das mulheres e da igualdade de género em Moçambique. 2020. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Estadual de Campinas, Campinas 

Leis, Normas e Políticas que promovem a igualdade de género em Moçambique

Normas Formais

 •     Resolução 61/143 (2006), que se refere à intensificação dos esforços para a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher; (Link 

•     Resolução 63/155 (2008), que urge os Estados a adoptarem o plano nacional integrado de combate à violência contra a mulher;

•     Resolução 54/7 (Março de 2010), sobre o fim da mutilação genital feminina;

•     Resolução 14/12 (2010), sobre a aceleração dos esforços para a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher e rapariga;

•     Criados Gabinete de atendimento à Família e Menores, a Mulheres e Crianças Vítimas de Violência Doméstica – decreto 85/2014 de 31 de Dezembro;

•     Fim do Despacho 39, que obrigava jovens grávidas a transferirem os seus estudos para os turnos nocturnos (2019)

Leis que promovem  a igualdade de género em Moçambique

•     Revisão do Código Comercial que estabelece a autonomia da mulher na realização de negócios económicos;  (link)

•     Lei nº 19/97, Lei de Terras, que confere direitos iguais de uso e aproveitamento da terra às mulheres e aos homens;  (link)

•     Constituição da República de 2004, que assume os direitos das mulheres como direitos humanos – artigos 36 e 67, enquanto que o artigo 122 incentiva o desenvolvimento da mulher;  (link)

•     Lei 12/2004, Lei da Família, que exclui a discriminação da mulher no casamento, divórcio, guarda das crianças e na divisão de bens, entre outros relativos à família; (link)

•     Lei 12/2007, Lei do Trabalho, que confere os direitos à licença de maternidade e paternidade, assim como igualdade transversal a nível laboral;  (link)

•     Lei n° 6/2008, Lei contra o Tráfico e Abuso de Mulheres e Crianças;  (link)

•     Lei 8/2003, dos órgãos Locais do Estado, que prevê no artigo 118 a quota de 30° de mulheres nos Conselhos Consultivos Locais; (link)

•     Lei n.°12/2009, Lei Anti-discriminação contra pessoas vivendo com o HIV e SIDA;  (link)

•     Lei nº 29/2009, Lei sobre a violência doméstica praticada contra a mulher; (link)

•     Lei nº19/2014, Lei de Protecção da Pessoa, do Trabalhador e do Candidato a Emprego Vivendo com HIV SIDA;  (link)

•     Lei n°34/2014, Lei do Direito à Informação;  (link)

•     Lei n°35/2014, Lei da Revisão do Código Penal, que descriminaliza o aborto e a homossexualidade; (link)

•     Lei 19/2019, Lei de Prevenção e Combate a Uniões Prematuras; (link)

•     Nova Lei da Família (Nº 22/2019);  (link)

•     Lei das Sucessões (Nº 23/2019);  (link)

•     Lei de revisão do Código Penal (Nº 24/2019);  (link)

Políticas, planos e estratégias de promoção da igualdade de género:

•     Plano Nacional sobre Mulher, Paz e Segurança (2018-2022);

•     Política de Género e Estratégia da sua Implementação (Aprovada em 2006 e revisada em 2018);  (link)

•     Política Nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva (2011);

•     Plano Nacional para o Avanço da Mulher (2018 – 2021);

•     Plano Nacional de Acção sobre Prevenção e Combate à Violência Baseada no Género (2018-2021); (link)

•     Plano Nacional de Acção Multissectorial sobre Género e HIV-SIDA (2011-2015);

•     Plano Nacional de Eliminação da Transmissão Vertical;

•     Estratégia de Género: Função Pública (2009);  Sector da Educação (2016-2020); Prevenção e Combate dos Casamentos Prematuros em Moçambique (2016-2019); Sector Agrário (2016-2025); Planeamento Familiar e Contracepção (2010-2020); Prevenção e Tratamento de Fístula Obstétrica (2012); Género, Ambiente e Mudanças Climáticas (2010); Calamidades e desastres ambientais INGC (2015).


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