Énia Lipanga

Énia Lipanga

Énia Lipanga

Nasci em Maputo, no bairro Luís Cabral, sou a filha mais nova e tenho 5 irmãos e 2 irmãs.

Tive uma infância agitada e cheia de amigos. Gostava de jogar à bola, saltar à corda e de contar histórias. A Énia teve de se tornar adulta muito cedo. Engravidei antes dos 18 anos e passei a ter uma grande responsabilidade como pessoa. A maternidade tornou-me uma mulher focada e que luta pelos seus sonhos, pois já não era apenas a Énia ou uma menina, era eu e o meu filho num contexto em que a gravidez me criou vários problemas de aceitação social. Tive apoio da minha família, sobretudo da minha mãe. O meu primeiro emprego foi como promotora de vendas e em 2013 tive o meu primeiro contacto com a área da comunicação, tendo trabalhado como jornalista na rádio Super FM e no portal Folha de Maputo, onde permaneci durante cerca de 5 anos. Actualmente, trabalho na área de vídeos comunitários na associação H2N, uma organização que através da comunicação procura melhorar as vidas das comunidades, dando ênfase nas áreas de nutrição e igualdade de género.

Comecei a escrever poemas quando frequentava o ensino primário (sexta e sétima classes), mas a minha escrita tornou-se de intervenção social quando passei ao ensino secundário e comecei a notar algumas diferenças de tratamento que me eram atribuídas por ser menina. Os meus textos sobre igualdade de oportunidades, violência sexual, entre outros, começaram naquela época e até hoje me é difícil parar de escrever estes gritos, pois ainda vivemos numa sociedade que olha a mulher como um mero instrumento de prazer e reprodução.

Uma das minhas maiores conquistas como poeta e ativista foi a criação do sarau Palavras são Palavras, evento mensal com 8 anos de existência, um palco onde todos e todas têm direito a voz e, através dele, várias poetisas foram impulsionadas a escrever mais sobre as suas lutas, pois já tinham (têm) onde apresentar e pessoas para as motivarem. Lancei no início de 2020 o meu primeiro livro de poemas, Sonolência e Alguns Rabiscos, um livro impresso a tinta e braile, para permitir a inclusão das pessoas com deficiência visual.

Uma grande Marco para mim e para Moçambique foi a aprovação da Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras, pois antes podíamos lutar contra este mal e ficava em muitos casos sem efeito, mas hoje já temos um instrumento e várias plataformas de denúncia. Já assisti a vários casos de uniões forçadas e prematuras e não pude fazer muito, já que é algo culturalmente aceite, mas agora com a lei já consigo ajudar algumas manas que me procuram a contar estes casos. Como activista, me tornei também um veículo de denúncias pois várias mulheres têm se aproximado de mim e me confiado as suas histórias e juntas buscamos uma ajuda. Saber que com os meus textos consigo quebrar o silêncio de muitas mulheres vítimas de violência faz-me querer continuar. Em 2019, fui selecionada para fazer parte do primeiro fórum do grupo de ativistas sociais Uqhagamishelwano, que luta contra práticas sociais nocivas, grupo este de que hoje faço parte como representante de África. É um grupo que me permitiu ter um olhar amplo sobre o activismo e sobre as lutas na igualdade de género que são mundiais.

Penso que para que as mulheres tenham os seus direitos respeitados é necessário que se mude a mentalidade de muitos que a olham como um ser inferior e destinado ao lar (no nosso contexto), é necessário que se abra um espaço para que a mulher tenha direito a sonhar, lutar e alcançar os seus sonhos, para que tenha a liberdade de escolher o que ser e o que fazer em sociedade.

Ezra Chambal Nhampoca

Eu nasci há 42 anos na localidade de Lionde, distrito de Chókwe, Gaza e cresci numa aldeia da mesma localidade. Actualmente vivo em Maputo. Sou docente e pesquisadora na Universidade Eduardo Mondlane, Departamento de Línguas, Secção de Línguas Bantu, onde sou coordenadora do grupo de Estudos em Línguas, Linguística Bantu e Áreas Afins (GELLBAA). Sou mãe, cuidadora e educadora de três meninas. Sou criadora e presidente da Associação Sororidade Moçambique, uma associação recém-criada, que defende a formação, transformação das mulheres e a igualdades de direitos, oportunidades e dignidade e respeito pelas pessoas, sobretudo das mulheres.

Eu nasci na localidade de Lionde, distrito de Chókwe, província de Gaza, Moçambique e cresci numa aldeia da mesma localidade, de onde saí aos 11 anos para ir continuar com os estudos na cidade de Chókwe. Sou 1ª filha sobrevivente depois de os meus pais terem tido três nados mortos, o que fez com que a avó paterna me desse o nome de Mahlomulu, que significa, numa tradução conceptual: o que vem só para nos fazer sofrer, pois também vai morrer! Só que eu vinguei e sobrevivi. Para contrariar o significado do nome dado pela minha avó, o meu pai, Alberto Chambal, inspirando-se no livro bíblico de Ezra (em Changana e Esdras, em Português), deu-me o nome de Ezra. Este foi um profeta protegido por Deus e foi a forma de meu pai dizer que eu também seria protegida por Deus e viveria.

Sempre gostei de ir à escola, de ler e estudar. Contam-me que desde os 4 anos,eu fugia de casa para a escola, seguindo a tia Hortência, irmã mais nova do meu pai, por isso, quando ingressei na escola, na pré, apesar de a minha língua materna ser o Changana, já sabia ler as primeiras letras em Português e já sabia também ler em Changana, porque o meu pai ensinava-me a ler a bíblia em Changana, em casa. Em 1989, concluí a 5ª classe, na localidade de Lionde e como não havia 6ª classe, tive que continuar os estudos na cidade de Chókwe, onde fui morar com a minha tia, irmã mais velha de seu pai. Portanto, saí da casa e do aconchego dos pais aos 11 anos e nunca mais regressei lá, a não ser para visitá-los.

Em 1997, aos 19 anos, experimentei um momento muito difícil, com o falecimento da minha mãe, Amélia Cuinica. Senti-me muito desamparada e eu era a irmã mais velha. No mesmo ano, concluí o ensino secundário na escola secundária do Chókwe e mais uma vez, no Chókwe não havia como continuar, pois não havia nível médio. Rumei para a capital de Gaza, Xai-Xai, para a escola pré-universitária de Xai-Xai, vivi no Famoso Centro Internato de Matendene, onde fiz o nível médio. Matendene foi uma grande escola, escasseava quase tudo, em termos materiais, mas muitas e muitos de nós fomos lá lapidadas e lapidados para sermos o que somos hoje.

Quando concluí o nível médio, ainda não havia universidades em Gaza e parecia que a minha sina era mudar de lugar para lugar, atrás da escolarização. Em 2000, a cidade de Chókwe foi assolada pelas enchentes e refugíamo-nos na Macia. Dormíamos no quintal da Direcção distrital da educação, na altura. Algumas semanas depois, a partir da Macia consegui uma boleia para Maputo, onde, literalmente sozinha, e com poucos recursos, preparei-me para o exame de admissão à Universidade Eduardo Mondlane (UEM).

Ainda no mesmo ano, consegui o primeiro emprego formal, uma vaga para dar aulas no ensino primário em Incomanine, Sábie, Moamba. Para chegar a Incomanine, saindo de Sábie, muitas vezes tínhamos que caminhar cerca de 7 km a pé, pois raramente aparecia por lá algum tipo de meio de transporte.

Em Incomanine, fiquei apenas um semestre, pois fui admitida na UEM para fazer o curso de Licenciatura em Linguística e Literatura. Esse foi um momento marcante, pois era a menina da aldeia a adentrar a Universidade. Eu estava muito feliz, apesar de saber que enfrentaria dificuldades financeiras para arcar com as despesas da universidade. Eu estava orgulhosa daquilo, meu pai também e ele dava de tudo para que eu seguisse com os estudos. Já naquela altura, eu sentia que eu estava em uma situação diferente da dos meus colegas da cidade. Eu não tinha muitos conhecimentos modernos, livros, roupas, etc. Mas tinha um foco: Fazer a universidade. Foi aí que conheci uma grande amiga, a Ernestina Salita Chirindja. Ela ajudou-me a abrir o meu primeiro e-mail, passei a ler os livros dela, líamos, debatíamos, estudávamos juntas e muitas vezes, para além dos livros, ela dividia o dinheiro dela de chapa comigo, quando não desse, íamos juntas a pé à universidade, a partir da Pandora, vindas dos bairros Bagamoio e 25 de Junho. Até hoje é uma grande irmã e madrinha das minhas filhas.

Outra boa alma que surgiu no meu caminho naquele momento, foi o Professor Bento Sitoe. Ele, percebendo a escassez de recursos da minha parte, passou a financiar as minhas cópias. Eu ia tirar cópias, registavam e, mensalmente, ele passava pela reprografia para pagar.

Portanto, fazer o curso de Linguística e Literatura na UEM não foi fácil, pelas difíceis condições económicas, contudo, aos poucos, fui superando. Fiz parte de um dos melhores grupos de estudo daquela turma de 2001, um grupo bem-sucedido; estudávamos muito. O nosso grupo era o “Irmãos de alma̎. Fizemos o curso com sucesso e em tempo útil. Para custear parte dos estudos, comecei a dar aulas de Português e História na Escola Primária Completa de Bagamoio. Com esse emprego, embora fosse difícil conciliar trabalho e estudos, a situação financeira melhorou e eu estava orgulhosa em poder pagar as minhas contas, kkkk.

Em Janeiro de 2005, em plena escrita dos dois trabalhos de fim de curso, um de Linguística e outro de Literatura, tive a minha primeira filha, Ndawina (que significa ganhei). Esse foi mais um momento marcante. No mesmo ano, terminei a licenciatura. Este também foi um momento bastante marcante, sobretudo a graduação, com aquela toga. Nunca ninguém da minha família directa tinha usado, formado-se em uma universidade. Eu era a primeira, por isso tive que fazer uma segunda festa de graduação lá na minha aldeia de origem.

Em 2006 ingressei na UEM como assistente estagiária. No mesmo ano, casei–me com Joaquim Nhampoca, meu companheiro da e na vida.

Em 2007, nasce a Maya Luna, minha segunda filha. Lembro-me que a Maya quase nascia na universidade, num seminário em Julho de 2007. O que valeu à bebé o nome de Seminarinha, nos primeiros dias de vida.

Em 2008, ingressei no Mestrado em Linguística, o qual terminei em tempo útil com uma defesa pública em 2010. Antes, Em 2009 recebi uma proposta do então chefe de secção de Línguas Bantu, David Langa, para integrar aquela secção. E no mesmo ano, beneficiei de uma bolsa para um estágio em Tervuren, Bélgica.

Em 2011, nasce a minha caçula, Dominique Joaquina.

Em 2014, mais uma vez, por motivos de formação, tive que mudar de lugar. Mudei-me para o Brasil e morei lá por quatro anos a realizar o Doutoramento. Levei as meninas para o Brasil, porque eu queria estar com elas, queria ver de perto, queria cuidar pessoalmente. Sou assim, minhas filhas, sobretudo agora que são menores, eu quero estar com elas. Eu passei por muita coisa, muita dor na vida, acho que isso tornou-me, não uma mãe híper-protectora, pois sempre faço questão de as ensinar a partir da minha experiência, mas sou uma mãe que quer estar com. Acho que é o desejo de que elas não passem pelo que eu passei.

Minha estadia no Brasil, na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, foi maravilhosa, marcada por uma forte presença, desde a organização de eventos e festas de Moçambique, mas também como palestrante e professora colaboradora de conteúdos africanos, na Universidade, no Município, no colégio e creche onde as minhas filhas estudavam. No Programa da minha formação, fui bem acolhida pelos professores e colegas. Fiz parcerias e amizades que serão para a vida toda. Mas no Brasil também passei por episódios de racismo e, entre lamentar e lutar contra, escolhi a segunda opção. E eu sabia que pelos padrões vigentes em nossas sociedades, para muitos, aquele não era o meu lugar: eu, uma mulher, mãe, negra, estrangeira ida de África e não dos EUA ou da Europa. Eu tinha consciência que ali seria discriminada por tudo isso. Mas entrei de cabeça erguida, andava pela universidade com as meninas e dava para ver as caras do tipo: o que você faz aqui?!! E, muitos nem imaginavam que eu fazia doutoramento ali.

Mas eu decidi enfrentar, superar e superei! Ensinei as minhas filhas a enfrentar o racismo e outras formas de discriminação, foi no Brasil que eu comecei a educá-las como crianças feministas. Hoje, elas são crianças feministas e, neste mundo patriarcal e machista, nada melhor que educar as nossas crianças como feministas, é a melhor preparação para a vida que lhes podemos dar, sejam meninas ou meninos.

Então, diante de uma discriminação eu reagia de imediato e dei muitas aulas formais e informais sobre conteúdos africanos, acima de tudo, fazia muito bem o que tinha ido fazer lá, fazia questão de fazer muito bem, para mostrar que uma mulher, mãe, negra, estrangeira e africana podia sim, fazer com sucesso um doutoramento, ter uma actividade académica e de activismo com sucesso. Terminei o doutoramento também em tempo útil, em Março de 2018.

Entre os grandes acontecimentos no Brasil, um dos mais importantes foi a homenagem pela Assembléia Legislativa de Santa Catarina, em 2017, por minha trajectória de luta em defesa da igualdade de direitos e contra todas as formas de discriminação e opressão.

Como mulher, são vários os momentos marcantes, alguns já indicados ao logo deste texto. Vou seleccionar alguns: um dos momentos mais impactantes foi quando me reconheci feminista, (porque ser feminista me valoriza quanto mulher; não preciso que alguém me diga que tenho valor, pois eu sei o meu valor e direitos). Não me lembro exactamente quando, mas quando isso aconteceu, eu identifiquei-me logo, porque fiz uma retrospectiva e vi que desde a infância, a minha trajectória, as minhas lutas tinham sido e são feministas. Tinham sido para mostrar que eu não sou inferior nem superior a um homem, por ser mulher – sempre acreditei que ser menina, mulher, nunca devia ser impedimento para realizar meus sonhos, sempre insisti em chegar onde a sociedade marcava como lugares impossíveis para as mulheres.

Os encontros do grupo Sororidade, agora associação, foram momentos marcantes, pois quando criei o Sororidade, o objectivo era ver a transformação das mulheres, que elas se enxergassem como sujeitas de suas vidas, que assumissem que elas têm um valor que vai muito além do papel servil a que o patriarcado as jogou e isso está a acontecer. Outro momento foi a homenagem no Brasil, nunca imaginei receber tamanha homenagem, tão nova e no estrangeiro. Impactou-me também a minha participação no 13º Congresso Mundos de Mulheres, em 2017, em Florianópolis. Foi um momento de encontros de mulheres de todo o mundo, de muita aprendizagem, sororidade e que mostrou que de facto, para tirar o mundo do buraco em que está, precisamos do feminismo, pois diferente do que dizem os detratores do feminismo, ele é de facto um pensamento, uma metodologia, uma teoria-acção que defende uma perspectiva igualitária entre as pessoas, em termos de direitos, oportunidades e dignidade, independentemente da raça, classe social, sexo. No dia que todos entendermos isso, o mundo será um lugar melhor.

Na verdade, na minha vida, foram muitas situações superadas. Quando se nasce numa “vilazinha” e se cresce numa aldeia e ainda por cima quando se é mulher e de repente você dá a volta ao mundo, adentra universidades nacionais e estrageiras e se faz um Doutoramento, é porque houve várias e duras etapas por superar, como por exemplo a discriminação de status, racial e de género. Onde as pessoas olham e pensam: por ser da aldeia, por ser mulher, por ser negra, você não vai conseguir! Eu já experimentei todas essas discriminações e superei, felizmente. Hoje enfrento essas discriminações com mais assertividade, argumentos e rebeldia, porque eu me preparo continuamente para enfrentar, leio e estudo sempre sobre. E quando você se prepara, em algum momento, a discriminação verga, é por isso que o feminismo não pode ser no vazio, só no blá-blá, há que ser sustentado com conhecimento e sabedoria.

Benedita Isabel Amaral

Chamo-me Benedita Isabel Amaral e nasci a 22 de Dezembro de 1965 no Hospital Miguel Bombarda da cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo. Sou filha de Damião Amaral e de Isabel Lifaniça.

Sou sim uma mulher com deficiência. Eu nasci com deficiência. Quando nasci, não chorava. Durante os meus 3 primeiros dias de vida nem mexia os membros superiores direito e inferior direito. A partir dos 15 dias, a minha mãe e eu ficamos internadas durante 3 meses porque eu tinha gesso nos membros superiores e inferiores direito.

Sou sim uma mulher com deficiência. Eu nasci com deficiência. Quando nasci, não chorava. Durante os meus 3 primeiros dias de vida nem mexia os membros superiores direito e inferior direito. A partir dos 15 dias, a minha mãe e eu ficamos internadas durante 3 meses porque eu tinha gesso nos membros superiores e inferiores direito.

Minha mãe me contou que quando eu tinha um ano e seis meses comecei a dar os primeiros passos da vida, mas tinha que continuar com a fisioterapia. Nessa altura, ela notou que estava grávida do seu segundo filho, meu irmão, e ela sentia-se mal pois no pensamento dela, achava que o seu filho seria de novo com a primeira. Então havia duas coisas que a deixavam muito mal. A primeira é se o segundo filho dela seria com eu e a segunda é que não ia às consultas pré-natal. Isso a atormentava e fazia com que, às vezes, não me levasse ao treinamento da fisioterapia. Mas o meu pai levava-me e ia me deixar na sala do treinamento, mas a minha mãe não conseguia ficar em casa e ia atrás de nós. Eu acho que era muito difícil para a minha mãe.

Foi assim até aos dias de hoje. O que me safou é que eu sou muito inteligente. Eu sou boa a perceber as coisas. Então o que me dava na escola eram as chamadas orais e leitura dos meus testes. Primeiro, eu era muito lenta a escrever e naquele tempo em que eu estudei foi um tempo muito difícil, não havia livros, tudo era apontamentos e eu sou muito lenta a escrever. Tinha que pedir os cadernos emprestados aos colegas para poder passar os apontamentos no meu caderno, porque nem lugar para tirarmos cópias não tínhamos. Mas nem todos os colegas me entendiam, diziam para eu passar o que estava na escola, o que não era possível por causa da minha lentidão. Na escola primária não passei muito mal nesta parte, pois eu estava na mesma turma com o meu irmão, então tinha facilidade. Mesmo quando eu reprovei na 3ª classe, não tive muitas dificuldades de apontamentos, porque tinha algumas colegas vizinhas que me emprestavam os seus cadernos e eu passava os apontamentos em casa. Era nesse momento, enquanto eu passava os apontamentos de uma determinada disciplina, que eu aproveitava para estudar. Algumas vezes tinha ajuda dos meus irmãos, da minha mãe e do meu pai.

O meu pai sempre dizia que era melhor eu passar sozinha os meus apontamentos, para melhorar a minha caligrafia, o que eu nunca consegui. O meu pai era muitas vezes chamado à minha escola, mas não por indisciplina, era por causa da minha caligrafia. Eu sempre me esforçava para ultrapassar essa barreira, mas infelizmente nunca consegui. Reprovei em algumas classes, como a 6ª classe, a 8ª classe e a 9ª classe. Na 9ª classe até reprovei mais vezes. Não por falta de entendimento da matéria, mas sim por causa da minha caligrafia, muitos dos meus professores não entendiam a minha caligrafia. Aliás, ninguém entendia a minha caligrafia, só eu entendo até hoje. A minha deficiência afectou-me a escrita e a fala. E ainda por cima a fase mais complicada foi a falta de transporte na cidade da Beira, eu vivia no primeiro Bairro Macuti. Era muito longe da escola, eu não ia sozinha, tinha sempre companhia para ir para escola secundária e os meus colegas e amigos e até os meus dois irmãos nunca me deixaram atrás, pois eles andavam depressa e eu andava sempre a correr para não ficar atrás. Mas devo dizer que valeu a pena porque me ajudou a andar muito e depressa.

Quando terminei a 9ª classe do antigo sistema, na Escola Secundária Samora Moisés Machel, a minha colocação foi na Direcção de Transporte e Comunicação de Sofala. Aquela Direcção me afectou na Empresa dos Aeroportos da Beira. Pus os meus documentos nesta empresa, era para a candidatura de operações e tráfego. Mas quando chegou a vez da entrevista, foi um grande martírio, porque o entrevistador só me perguntou o meu nome e a minha idade, o que eu respondi, para de seguida dizer-me que eu não podia fazer a entrevista por causa da minha deficiência.

Eu fiquei muito abalada, fiquei sem chão e sem forças. Não sei como cheguei a casa nesse dia. Sei dizer que fui recebida pelos meus pais, que me deram muita força, mas confesso que não foi fácil porque eu sabia que estava a começar um grande desafio na minha vida, tendo em conta que eu já tinha os meus 21 anos e que queria fazer as minhas próprias coisas. Eu sempre quis ter um emprego. Voltei de novo à Direção de Transportes e Comunicações da província de Sofala e, de lá, mandaram-me para as Telecomunicações de Moçambique. Lá também não me aceitaram. Voltei à Direcção de Transportes e Comunicações e pedi para ficar nos Correios de Moçambique, para ficar na secção de separação de cartas. Lá também fui devolvida por causa da minha deficiência. Então fui ficando em casa, ajudando a minha mãe nos trabalhos de casa. Mais tarde, um dos meus colegas convidou-me a aprender dactilografia e assim foi. Mais tarde, fiz o curso de dactilografia na Escola Comercial Amílcar Cabral, para ver se eu tinha facilidade em conseguir emprego, mas mesmo assim não consegui resolver o meu problema.

Decidi ir procurar emprego na cidade de Maputo. Aqui também tive muitas barreiras, mas quando eu estava a sair da Beira em 1990, o meu pai deu-me uma referência para me ajudar. Fui ter com a senhora e, juntas, começamos a procurar emprego. Batemos muito a várias portas, mas nenhuma se abriu. Um dia eu fui ter com a senhora e ela disse-me: Olá minha filha, há uma associação de pessoas portadoras de deficientes que faz alguma coisa.

Fui para lá e fui recebida pela Doutora Farida Gulamo e depois de eu contar a minha história, ela me convidou-me a participar no primeiro seminário sobre as pessoas portadoras de deficiência. Neste evento, escolheram algumas pessoas com deficiência para contar as suas histórias e eu fui uma das escolhidas para contar a minha triste história. Sei dizer que, quando acabei de falar, muitas pessoas ficaram muito emocionadas, eu também fiquei. Mas posso dizer que, a partir daquele dia eu mudei. Eu era uma menina de 22 anos cheia de medo, “choramiguinhas”. Mas naquele encontro, encontrei uma mulher com deficiência, uma pessoa que me disse: Benedita, deves ser guerreira, ir à luta. E eu preguntei a ela o que devo fazer. A única coisa que ela me disse foi para continuar a estudar. Mas eu na altura queria um emprego. Foi assim que eu voltei para a cidade da Beira e passei a coser alguma roupa no Instituto de Deficientes Visuais da Beira. Cosia roupa que se rasgava dos alunos com deficiência. Pouco tempo depois, consegui o meu primeiro emprego, em 1990, como embaladora de pacotes de sais hidratantes.

Enquanto trabalhava, continuei a estudar à noite. Foi muito difícil estudar e trabalhar. Na altura, não havia transporte para ir à escola, eu ia a pé. No ano seguinte, consegui um emprego numa empresa de sais de desidratação oral. Trabalhei como embaladora de pacotes e, mais tarde, como secretária da direcção. Enquanto trabalhava, eu estudava à noite. Isso foi em 1995. Em 1993, participei no concurso para o curso de Técnica de Farmácia na capital (Maputo), o qual passei em todos os testes. Iniciei a formação, mas depois de três meses, fui tirada do curso por causa da minha deficiência. Foi mais uma derrota, muito forte. Eu estava praticamente sozinha de novo, fiquei sem chão. Lembro que contei somente ao meu pai, não porque não podia contar à minha mãe, mas porque estava cansada de ver minha mãe sofrer. Mas quando eu voltei para casa, tive de lhe contar e ela sofreu muito.

Como disse atrás, quando voltei de Maputo, entrei também para o associativismo, para a Associação dos Deficientes de Moçambique. Foi aqui que começámos o associativismo. Nessa altura nem tínhamos projectos, mas fazíamos as coisas acontecer. Eu também nunca desisti de procurar emprego, mas nunca consegui. Fomos desenvolvendo várias actividades em prol da pessoa com deficiência, mas eu sempre olhava pelo lado da rapariga e mulher com deficiência, por uma razão muito simples. Esta camada é a mais vulnerável e nem sempre tem alguém que olhe por ela ou por nós. Se formos a analisar, a mulher com deficiência sofre uma dupla discriminação. O homem discrimina-a e ela é vítima de violência.

Foi com base nisto tudo que, em 2006, um grupo de 20 mulheres se juntaram e fundamos a Associação da Mulher Portadora de Deficiência de Sofala. Mais tarde, passei com a minha associação a fazer parte do Fórum dos Deficientes de Moçambique (FAMOD). Lutando sempre pelos defeitos da mulher com deficiência. Mais tarde, fui convidada para fazer parte do Grupo de Mulheres de Partilha de Ideias de Sofala (GMPIS). Levei um grupo de mulheres e raparigas com deficiência para fazerem parte deste grupo. Ali, nós aprendemos vários temas relacionados com o dia a dia da mulher e rapariga. Devo dizer que foi neste grupo que aprendi muita coisa de construção da vida. Neste momento, e neste dia tão especial, encontro-me reunida com outras mulheres a reflectir diversos temas da atualidade mundial e, em particular, de Moçambique.

Também participei na formação do Gal CENTRO. Também estou a falar sobre a mulher e rapariga com deficiência para as associações que fazem parte do GMPIS. Em poucas palavras, foi esta a minha vida.





As mulheres do Gungunhana

Maria da Conceição Vilhena


1. No último quartel do século XIX, nas terras do sul de Moçambique, entre os rios Incomati e Zambeze, Gungunhana impunha-se como o maior potentado africano. Era o senhor do reino de Gaza, tinha mais de uma centena de vassalos e possuía uma enorme riqueza, constituída por ouro, marfim e rebanhos de gado. O seu prestígio político e social vinha-lhe ainda do facto de possuir entre 200 a 300 esposas: 40 viviam junto da corte e as restantes habitavam nas aldeias circunvizinhas. A aquisição de novas esposas fazia-se a um ritmo quase bimestral; e cada casamento era sempre causa de maior engrandecimento, por permitir novas alianças e atrair grande número de presentes. Era uma grande honra ter o régulo de Gaza como genro e protector. Seria demasiado longo falarmos da vida que levavam estas mulheres, em geral; por isso nos limitaremos às sete que acompanharam o marido no exílio.

2. No dia 28 de Dezembro de 1895, após algumas tentativas de negociações e a derrota de Coolela, seguida do incêndio do Manjacaze, a capital de Gaza, Gungunhana foi feito prisioneiro em Chaimite, por Mousinho de Albuquerque. O oficial português deu então ordem ao régulo para que escolhesse sete de entre as suas mulheres, que o acompanhariam no seu incerto destino. Foram elas: Namatuco, Patihina, Muzamussi, Machacha, Xesipe e Dabondi. Feitas as suas poucas bagagens, lá seguiram os prisioneiros a pé durante algumas horas, até chegarem a Zimacaze, na foz do Chengane. Aí embarcaram na canhoneira Capelo, que os estava esperando e os transporta até Chai-Chai. A propósito deste embarque, queremos lembrar que, na cultura angune, havia um tabu proibitivo de entrar na água e comer peixe. Os prisioneiros devem, pois, ter sido invadidos pelo horror de viajar de barco, o que irá repetir-se, por várias vezes, até ao fim da deportação.

Com os onze prisioneiros do Manjacaze (Gungunhana, o filho Godide, o tio Molungo, o cozinheiro Gó e as sete mulheres), embarcam também o régulo da Zixaxa e três mulheres deste, cuja sorte iria ser igual à dos outros. Em Xai-Xai, na foz do Limpopo, passam então para o navio Neves Ferreira, que os transporta até Lourenço Marques, onde chegam no dia 4 de Janeiro. Aí desembarcam e são mantidos na cadeia homens e mulheres, até serem levados para bordo do África, após o seu reconhecimento oficial, feito em público. Neste navio África fariam uma viagem de 60 dias, até Lisboa. As condições a bordo deviam ser péssimas, pois Gungunhana e seus companheiros, num total de 15 pessoas, ocupavam apenas dois compartimentos pequenos, escuros e mal arejados. Por razões de segurança, aí ficavam fechados à chave, sempre que o barco fazia escala em qualquer porto. E foi o enjoo, a asfixia, a imobilidade, a juntar à angústia da dúvida sobre o futuro que os esperava. Os jornalistas falam mesmo da tentativa de suicídio por parte de uma das mulheres…

3. Na manhã do dia 13 de Março de 1896, desembarcam em Lisboa e são conduzidos em caleches descobertas, do Arsenal até ao forte de Monsanto. Lisboa em festa, a abarrotar de multidões ruidosas. O público, apinhado pelas ruas, empoleirado em postes, debruçado das janelas, aos magotes, como enxames, ri, grita, vaia eufórico. Dentro das carruagens, os prisioneiros olham temerosos e embaraçados; eles com ar estupefacto, perplexo; elas apontando, curiosas e divertidas. Nunca tinham visto casas tão altas, com varandas, ruas calcetadas, praças com fontes e estátuas. E tanta gente alegre, a observá-las, durante todo o percurso. As mulheres africanas parecem bem dispostas.

Do Terreiro do Paço seguiu o cortejo pela rua do Ouro, Avenida da Liberdade, S. Sebastião da Pedreira, Sete Rios, Benfica, rumo a Monsanto. Por todo o lado, em todo o percurso, era aquela mole imensa de gente, às gargalhadas e a insultar. Porém o desconhecimento da língua portuguesa dava às prisioneiras a vantagem de não compreenderem o ódio e a ironia da arraia miúda e assim, na sua inocência, poderem continuar a sorrir.

Era o dia 13, uma sexta-feira de céu cinzento. Se os africanos tivessem as mesmas superstições que os brancos, tanto bastaria para que os maus presságios agudizassem ainda mais a angústia que os atormentava.

A tarde aproxima-se do seu fim, quando chegam ao forte de Monsanto. São seis horas e, em Março, o sol está a esconder-se. As instalações onde são recebidas nada têm de semelhante àquelas casas que, na Baixa, as haviam deslumbrado. Passada a ponte levadiça, entram numa masmorra, onde a escuridão era quase total. As mulheres estão agora assustadas e o terror estampa-se-lhes no rosto. O quarto que lhes haviam destinado, encontrava-se seis metros abaixo da superfície. Espaço escuro, bafiento, mal cheiroso, húmido e frio. Suspiravam amedrontadas e foi necessário tranquilizá-las; mas continuaram a tremer de frio e talvez de medo. Assim as encontrou o médico encarregado de examinar o seu estado de saúde.

São-lhes mostradas as camas e explicam-lhes como são utilizadas. Até então haviam dormido no chão, sobre esteiras. Convencidas finalmente de que não lhes iria acontecer mal, ao entrarem nas camas riram ruidosamente.

Nesta fortaleza de Monsanto iriam ficar encerradas durante quatro meses, aproximadamente. Gente habituada a viver ao ar livre, em contacto com a natureza e em constante movimento, vê-se agora privada da largueza dos seus espaços e da quentura do seu clima; imóveis e geladas entre quatro paredes do calabouço, num entorpecimento do corpo e do espírito. Detestam a comida portuguesa e queixam-se constantemente de frio.

Entretanto, aprendem a utilizar talheres e passam a usar vestuário europeu.

4. Como passavam o tempo essas mulheres prisioneiras?

Grande parte do seu dia era ocupado a pentearem-se, pois usavam um penteado artístico, alto, entre o cónico e o cilíndrico, que constituía um dos distintivos das mulheres grandes do Gungunhana. As mulheres enas, ou seja, as rainhas de segunda classe, não tinham o direito de usar esse tipo de penteado. Quanto à favorita, tinha outra ocupação, pois cabia-lhe o dever de manter sempre brilhante a coroa de cera que o marido usava e que era tecida no próprio cabelo. Além disso, dedicavam-se ao artesanato, fazendo pulseiras e colares de missanga, artisticamente trabalhados.

Ao princípio, a monotonia dos dias foi quebrada pelas muitas visitas que recebiam. As esposas de ministros, ou de outras altas individualidades, conseguiam a autorização do Ministério da Guerra e iam até Monsanto, entravam nos calabouços, sorriam, levavam presentes. Por curiosidade ou para cumprir o dever de visitar os presos. Não conheciam a língua, mas comunicavam por gestos de simpatia. Ofereciam fruta e doces, objectos variados, pequenos nadas que davam prazer. Um jornalista referiu uma vez a agilidade e delicadeza com que uma dessas mulheres prisioneiras calçou umas luvas que acabava de receber. Com tanta facilidade e perfeição como se a isso estivesse habituada de longa data; e um dia em que uma senhora lhes ofereceu flores, com elas adornaram alegremente os seus penteados.

As prisioneiras mostravam aos visitantes os seus trabalhos em missangas, com cores variadas e caprichosos desenhos. Estes apreciavam, elogiavam-lhes a arte, sorriam.

Mas um dia acabaram-se as visitas, por o ministério as ter proibido. E então foi a solidão total. Tensão, crises de mau humor, cólera, emoções descontroladas, transgredindo assim a contenção imposta pela disciplina militar. O recluso tem de obedecer, mas os nervos começam a dar sinais de fadiga. Há gritos e ameaças, intervenção das forças da ordem. As mulheres choram, os homens são punidos. Era muito difícil, para um rei déspota e violento como Gungunhana, a renúncia calma ao prestígio de que gozara e a aceitação submissa do vencedor português. Cada vez mais angustiado e atormentado pelo receio da condenação à morte, Gungunhana atinge o limiar das suas forças. Adoece gravemente e tem de ser hospitalizado. A sua partida para o hospital impressionou de tal modo as rainhas, que estas quase deixaram de comer.

Algumas delas adoeceram mesmo e o médico chegou a propor o seu internamento. No dia em que o marido regressou recuperado, foi grande a alegria das esposas, traduzida em carícias, gargalhadas e gritos de prazer que entoaram pelas celas.

5. De repente a imprensa deixa de se interessar pelos prisioneiros africanos. O encanto da novidade tinha-se extinguido; e agora nada mais saberemos a seu respeito, a não ser que passaram os meses de Abril, Maio e Junho, na mais horrível solidão. Dias a decorrer na penumbra, incertos de futuro, exíguos de espaço, longos de monotonia, húmidos e frios. Até que, no dia 23 de Junho os jornais anunciam a partida do Gungunhana e dos seus três companheiros, na véspera, para os Açores.

E as mulheres? Não partem, por enquanto. Apesar das visitas simpáticas que haviam recebido, a sociedade lisboeta havia-as rejeitado, escandalizada com a poligamia. Para acabar com o pecado, as autoridades haviam decidido separá-las do marido.

Segundo contam os jornalistas, foi muito dolorosa a separação, nesse dia 22 de Junho, pelas 7h da manhã. Eles a tremer, de lágrimas nos olhos, convencidos de que iam ser mortos. Elas sem quererem separar-se deles, chorando, gritando, lamentando-se.

Esquecidas pela multidão que antes rodeava o forte, abandonadas aparentemente pelas autoridades, a solidão destas mulheres tornou-se insuportável. Tiraram-lhes os seus companheiros; e ali ficam sozinhas, de 22 de Junho a 6 de Julho.

Duas longas semanas de dor, de dúvida, de solidão e de medo. Caídas numa apatia total, nem forças tinham para qualquer eventual acesso de fúria.

Era a segunda desagregação familiar que sofriam. A voz do sangue silenciada por razões de ordem moral e política. Desprevenidas, indefesas, arrancadas a laços e raízes, elas esperam não sabem o quê.

Finalmente vem do Ministério a decisão: despachá-las para a ilha de S. Tomé.

Pelas 5h da manhã do dia 6 de Julho recebem então ordem para se vestir e partir. O sofrimento que deixam transparecer é tão grande que os próprios jornalistas se sentem comovidos e revoltados: “pobres expatriadas” que pareciam nem ter forças para se vestir. Ninguém para se despedir delas. À chegada, estavam as ruas cheias de gente, havia movimento e alegria; agora, à partida, é o desconsolador abandono total.

6. Transportam-nas até ao Arsenal e embarcam-nas no paquete S. Tomé. Já no beliche, impressionam por um silêncio desolador. Umas estendidas, de olhos fechados, como se dormissem, outras, acocoradas e lacrimosas, olhando os circunstantes com pavor; duas recusavam-se a mostrar o rosto. Debilitadas pelo entorpecimento de quatro meses, dilaceradas pelo martírio da dúvida, refugiavam-se num mutismo impregnado de horror, receio e solidão.

A separação dos régulos africanos das suas esposas, e o envio destas para S. Tomé, parece ter sido a resposta a uma campanha de moralização, levada a cabo por um grupo de senhoras de bem, revoltadas contra a poligamia dos negros.

Era, pois, uma campanha autorizada, promovida e apoiada por pessoas de bons costumes, que consideravam a presença daquelas mulheres como um insulto à moral pública. Além disso, sendo os Açores uma terra de grande religiosidade e pureza (salvaguardada e assegurada pelas casas de prostituição…), o governo não poderia permitir uma tal promiscuidade.

A separação foi, pois, uma operação de limpeza, imposta pela moral tradicional.

Digamos a propósito termos a notícia de que, nos Açores, os prisioneiros africanos eram levados, regularmente, às casas de prostituição da cidade de Angra do Heroísmo.

Referem alguns jornalistas que se tentou convencer Gugunhana à monogamia. Como a moral portuguesa só admitia, publicamente, uma mulher, o régulo teria de escolher uma entre as setes e repudiar seis; o que, para estas, seria uma humilhação insuportável. Gungunhana amava-as todas igualmente; e não sabia nem quis escolher uma, pois cometeria para com as outras uma afronta que ele nunca se permitiria. Por isso foi firme e enérgico, coerente com os seus princípios. Tendo-se recusado a escolher uma, a separação foi inevitável. Bem pediu o régulo, bem suplicou, mas de nada lhe serviu. Jornais houve que protestaram contra esta decisão, prevendo para Gungunhana uma lenta agonia, minado de uma saudade e tristeza que lhe encurtaria os dias; o que realmente se deu.

Nada, porém, abalou as cúpulas; e as suas ordens foram integralmente cumpridas.

E lá partem para S. Tomé, sozinhas, vazias de sonho, sem ninguém que lhes acene com o lenço da amizade; lá seguem pela imensidão de um mar revolto, sem ninguém que lhes estenda a mão da solidariedade, sem ninguém que lhes dirija um gesto de compreensão.

Um jornalista comenta: “Em S. Tomé, que sorte desgraçadíssima vão ter? Não seria mais justo, e muitíssimo mais digno, enviá-las para a sua terra natal, de onde nunca deveriam ter saído?!”

Era muito grave, aqui no continente, ser-se acusado de “propensões benévolas” para com o Gungunhana. Para se tomar o partido deste, era necessário não só muita coragem, como carecia de um preâmbulo filosófico, moral e religioso, com apelo à caridade. De contrário, corria-se o risco de ser acusado de traição à pátria. Ou de imoralidade. Ou de atentado aos princípios cristãos. Só depois de tomadas todas essas precauções, a Folha do Povo arrisca criticar e condenar ferozmente o comportamento do Ministério da Guerra, que acusa de iníquo e cruelmente bárbaro.

Igualmente encontramos críticas violentas no Jornal do Comércio, onde um jornalista, sob o pseudónimo de Fernão Lopes, põe em realce a hipocrisia do governo, escudado no que chama “escrúpulos religiosos” tardios.

Fernão Lopes termina o seu artigo relembrando a maneira correcta e hospitaleira como os portugueses foram sempre recebidos por homens e mulheres da corte de Gungunhana.

7. Passados doze dias de náusea e imobilidade, as mulheres chegam a S. Tomé e são entregues ao governador da ilha. Em que vão ocupá-las?

Em S. Tomé havia então um mundo confuso de imigrantes, vindos dos mais variados pontos de África, das mais diversas tribos, odiando-se por vezes. Basta olharmos as listas das levas que chegavam ou partiam, para nos darmos conta dessa variedade. Em comum, tinham apenas a cor da pele; e o trágico destino da falta de trabalho. Falavam dialectos diferentes e desconheciam-se entre si. Foi para o meio desta confusão que as rainhas destronadas foram levadas.

Que destino lhes foi dado? A Folha do Povo, de 13 de Novembro dessa ano de 1896, e respondendo a vários jornais de Lisboa, dá-nos algumas informações. Recordemos que, juntamente com as sete mulheres de Gungunhana, se encontravam mais três, as do régulo Zixaxa, suas companheiras de infortúnio desde o início do exílio. Eram, pois, dez ao todo.

Segundo o citado jornal, oito destas mulheres estavam colocadas no hospital civil e militar; e as duas restantes no palácio do Governo. Constava pouco ou quase nada fazerem; e o articulista lamenta que, dado a falta de braços em S. Tomé, as não tenham empregado “em qualquer trabalho útil, mediante remuneração condigna”.

Vem a propósito lembrar que se tratava das mulheres grandes do régulo, isto é, as de mais elevada categoria social na hierarquia feminina, que tinham ao seu serviço as mulheres pequenas, espécie de ecónomas encarregadas de dirigir os bandos de escravos a trabalhar na corte. Eram, portanto, rainhas que nada costumavam fazer e sem hábitos de trabalho.

J. F. Marques Pereira, na obra intitulada No Tempo de Gungunhana, publicada três anos mais tarde (1899), diz que as mulheres foram para S. Tomé “servir de mancebas, em amiganços baratos, e para acarretar pedras”. E António Pedro de Vasconcelos no filme Aqui d’ El-Rei, faz dizer a uma das personagens que elas foram levadas para um “bordel do exército”.

Não encontramos documentos oficiais que nos permitam negar ou confirmar tais informações. Tratava-se de mulheres que só interessaram enquanto rainhas de um reino cobiçado pelos europeus. Destronado e preso o soberano, perdidas as esposas no meio da massa anónima santomense, o governo, não vendo nelas qualquer perigo, deixava-as cair no esquecimento.

8. Em S. Tomé, as rainhas africanas dos reinos de Gaza e da Zixaxa foram ultrapassadas e absorvidas pela história. Quinze anos de esquecimento; quinze anos de trabalho silencioso, de dor ignorada, de sofrimento mudo que levaria três delas à morte. Num silêncio de deserto, as rainhas tinham sido tornadas escravas submissas, feitas consentimento e conformismo. Enigmas de uma grandeza descaída.

Mas em 1910 é implantada a república; e muita coisa vai mudar.

Alguém se lembra dessas mulheres exiladas e decide que regressem ao país. Comédia eleitoralista ou desejo de reparação?

Gungunhana já havia falecido em 1906.

A ordem de repatriamento, em 1911, foi sem dúvida recebida com euforia; era a esperança do regresso a casa que renascia. Só que já não havia casa. Nem país. Gaza tornara-se num distrito da colónia de Moçambique. Os familiares tinham-se espalhado, cada um para seu lado, alguns presos, outros refugiados no estrangeiro. Era a desintegração progressiva dos pequenos estados indígenas e a substituição dos costumes africanos pelos europeus.

Desconfiadas, assustadas, sem o elo de união que era o marido, só o medo as irmanava agora; e cada uma vai para seu lado.

9. Eram sete, regressavam quatro. As três mais vulneráveis haviam atingido o limite que desemboca na morte: Muzamussi, Dabondi e Fussi haviam ficado sepultadas em terra santomense.

Patihina volta a casa, mas o medo lavra na família e ela decide fugir para o Transvaal, com o filho Tulimahanche. Foram juntar-se aos milhares de emigrados de Gaza, amigos e familiares de Gungunhana, que se haviam fixado em Spelonken. Tulimahanche seria, em 1932, o chefe de um dos dois grupos de exilados angunes que aí existiam então.

Namatuco, Chlézipe e Machacha traziam filhos arranjados em S. Tomé, nos quinze anos de exílio; filhos que, nada tendo com Gungunhana, não corriam o risco de vir a ser presos pelos portugueses. Por isso não recearam em fixar-se na região onde tinham vivido anteriormente: Chaimite, Chibuto e Xai-Xai, respectivamente. Tinham cumprido plenamente o destino ancestral da mulher: resignar-se e sofrer, numa passividade submissa. Já no seu país, continuarão a cumprir o mesmo destino, como “criadas de servir”.

10. E terminamos.

Com este trabalho, tivemos a intenção de dar som às vozes silenciosas de mulheres que sofreram cruelmente no todo das suas vidas, o que de mais negativo pôde haver no encontro da cultura africana com a cultura europeia. Mulheres esquecidas, relegadas para a periferia da história, quando elas estavam, afinal, bem no centro dessa história. Elas eram as rainhas do império de Gaza, onde tinham exercido uma importante função política. Elas eram as esposas do então maior potentado da África austral, pelo que pagaram com quinze anos de exílio.

Moralmente mutiladas, elas foram as vítimas inocentes de um evoluir da história africana, provocado por decisões e projectos da Europa, os quais levaram a alterações sócio-políticas que as afectaram no mais fundo das suas idiossincrasias. Desfeita a sua vida privada, desagregada a sua família, estas mulheres tornaram-se o símbolo de uma África desmoronada e dividida por ideologias levadas da Europa.

NOTA: Esta é uma reprodução do texto que pode ser encontrado aqui

Denise Milice

Denise Milice é uma jovem médica e activista feminista. Nascida na cidade de Maputo em 1992, a sua relação com o activismo e o envolvimento com questões ligadas a género e feminismo começou ainda em criança, principalmente através da sua mãe. Ainda adolescente participou mais de uma vez no CSW (Commission on the Status of Women), começou a fazer parte da rede de formadores do Fórum Mulher e se envolveu com as actividades do Graal Moçambique, movimento de mulheres cristãs.

Actualmente, participa de algumas acções do Fórum Mulher, da Marcha Mundial das Mulheres e do Movimento das Jovens Feministas de Moçambique. No entanto, é no blog A Jovem Feminista, assim como no Facebook, onde mais pratica o seu activismo, escrevendo textos que questionam a subordinação das mulheres a uma série de costumes e tradições, que falam sobre ser feminista, além de usar o seu corpo para uma série de ensaios fotográficos que expressam o poder feminino.

A ideia do blog surgiu, em parte, de uma necessidade de exteriorizar os seus dilemas sobre ser mulher, sobre combater a violência, sobre as desigualdades, sobre o feminismo, sobre envolver os homens nesta luta, entre outros temas que a inquietam. Surgiu, também, da necessidade de contribuir de alguma forma para o activismo feminista, uma vez que, devido à sua profissão, não tem tanto tempo para participar nas actividades das organizações feministas como antes. Assim, começou a publicar textos no Facebook e, incentivada por amigos e familiares, decidiu criar o blog. Os seus textos são inspirados nas vivências e conversas junto a outras mulheres, assim como nas suas leituras de Chimamanda Ngozi Adichie, Simone de Beauvoir, em romances, artigos, o blog de uma outra jovem feminista (Eliana Nzualo), e alguns textos de Mamana Wa Vatsongwana (pseudónimo de Rosalina Nhachote). Denise conta que o blog se centra nas mulheres e nas suas vivências: A mulher é o cerne dos meus textos, o âmago mesmo é falar sobre a mulher multifacetada e tudo o que está à volta. Então eu sentia necessidade de exteriorizar aquilo que as outras mulheres sentiam. É como se eu me sentisse na responsabilidade de ser porta-voz das dores das outras mulheres. Então eu falava sobre as traições, coisas simples do dia a dia, da necessidade de espaços livres para asmulheres. Porque as mulheres, por exemplo, sentem medo de andar à noite. Não era suposto. (…) Também a liberdade, sobretudo. Livre para escolher como é que é o cabelo dela, se ela quer pintar de roxo, amarelo, vermelho, se ela quer o cabelo curto ou comprido (…) as questões relacionadas à higiene e todo o padrão que se tem sobre a mulher. (…) Sobretudo isto, a liberdade. A liberdade e a sororidade feminina. É assim que se chama, né? As mulheres têm que ser amigas. (…) para dizer que as mulheres podem ser perfeitamente felizes sem terem um homem. (…) ia lendo outras coisas que me iam inspirando e conversando com mulheres, raparigas que me iam inspirando. Isso também ajudava para a minha produção. Na verdade eu lia tudo. (…) Quero escrever por mim, porque faz-me bem, mas também quero escrever porque é a forma como eu posso fazer o meu activismo actualmente. Eu tenho uma profissão, sou médica a fazer carreira de investigadora, não tenho tanto tempo para estar…o meu dia a dia de ver com outras mulheres, que estão a fazer a sua vida profissional no activismo feminista e etc. Não tendo tempo, acho que tenho a responsabilidade de contribuir de alguma forma.”

Para Denise, ser feminista é um processo. Processo que a levou a desfazer-se das ideias que tinha do que era ser feminista – mal-amada, extremista, anti-homem – e a compreender que a neutralidade não é uma opção. Como ela mesma explica, “Eu achava que eu poderia defender os direitos das mulheres e das raparigas, mas de uma forma pacífica. De uma forma – eu não sei se é neutra, mas – sem ferir. Quando nós, quando estamos numa guerra, vamo-nos magoar sim, vamos sair feridas. (…) Não acredito que traga desordem, mas também é verdade que cada pessoa percebe da sua maneira e também é verdade que nós temos frentes ou grupos de pessoas que são extremistas. Que são, por exemplo, anti-homem, que não querem saber dos homens para nada. Então eu temia por aí. Mas depois eu comecei a perceber que não, que isto que eu estava a pensar não tinha nada a ver. Que eu tinha que superar o meu medo e não temer os rótulos. (…) O mais importante é eu ter a certeza de que a luta que eu estou a fazer tem razão de ser”.

Denise acredita que o feminismo não só liberta as mulheres, mas também os homens, uma vez que “nos dá oportunidade de nós sermos aquilo que nós queremos ser. Há muitos homens que querem ser sensíveis, que querem mostrar a sua vulnerabilidade, a sua fraqueza, mas que não podem por causa da sociedade em que nós nos encontramos. (…) eu penso que o feminismo é uma luta que, se nós percebêssemos ela como deve ser, haveria de ser libertador não só para as mulheres, mas também para os homens. Porque haveria de permitir que tanto o homem quanto a mulher pudesse ser aquilo que são. Porque tanto o homem quanto a mulher têm que mostrar os seus sentimentos, têm que ser sensíveis e têm que também ser fortes. (…) nós temos medo da palavra feminismo porque achamos que é o oposto do machismo, porque achamos que é algo que está contra os homens. Quando vamos estudar a essência do feminismo, nós descobrimos que é algo libertador, é o que realmente os homens e as mulheres precisam para se assumirem como são. Só que o importante é estudarmos e perceber. Porque nós julgamos porque temos medo do desconhecido. Temos medo do escuro e prontos, não vamos investigar porque é o escuro, é lá onde estão os fantasmas. Quando a única coisa que precisamos é de acender a luz e descobrir que não há nada senão os móveis e os objectos à volta. Então nós temos que acender a luz para o feminismo, para nós percebermos que é uma luta que tem razão de ser porque as desigualdades existem. E assumindo as desigualdades e a luta do feminismo, homens e mulheres podem andar de mãos dadas para serem iguais socialmente, o que é aquilo que se pretende.”



Esta história de vida foi elaborada tendo como base uma série de entrevistas realizadas entre Maio e Julho de 2017, por Catarina Casimiro Trindade, para a sua pesquisa de doutoramento.

Blog A Jovem Feminista: https://denymilicefeminista.wordpress.com/

Maria José Arthur

Maria José Arthur é pesquisadora, feminista e defensora dos direitos humanos das mulheres. Para ela, ser feminista traz consigo imensos desafios, nomeadamente a resistência que há, sobretudo vinda dos homens, que receiam perder os seus direitos. Para a pesquisadora, esta resistência demonstra “(…) claramente medo, não é? É uma reação de defesa. O problema é que muitas das vezes a gente quando está a falar de igualdade de direitos, a igualdade de direitos vai atingir directamente os homens e os privilégios que têm. E são tão grandes que estão a engolir os nossos direitos. Portanto, é verdade que os homens perdem alguma coisa, mas não perdem direito, perdem privilégios. E é aí que toda a desqualificação do feminismo faz sentido. Porque cada vez que a gente fala que quer defender isto, quer igualdade, etc, é feminista. E ao dizer feminista, acabou. (…) Então como é que é ser feminista? É terrível, mas ao mesmo tempo a gente também se ri (risos). Trabalhamos em grupo. (…) Quer dizer, no fundo a gente também vai encontrando momentos para descomprimir e nos rimos também.

Nascida na cidade de Quelimane, capital da província da Zambézia, em 1958, Maria José mudou-se posteriormente para Maputo, de modo a continuar os estudos, tendo feito o bacharelato em História (1980) na UEM. Depois de graduada, deu aulas de História no Departamento de História/Geografia na Faculdade de Educação, como assistente estagiária. Em 1984, regressa à Beira, onde dá aulas de História ao ensino secundário (pré-universitário), trabalhando posteriormente no Ministério da Educação e como Directora do Núcleo e do Departamento de Investigação do Projecto Arquivos do Património Cultural (ARPAC), no Instituto de Investigação Sócio-Cultural, do Ministério da Cultura.

Nunca foi membro ou militou na Organização da Mulher Moçambicana (OMM), mas durante o período em que viveu na Beira, em meados dos anos 80, participou na recolha de informação sobre a situação da mulher em Moçambique, como preparação para a conferência extraordinária da OMM em Maputo. Participou, também, ainda na adolescência, em actividades da Organização da Juventude Moçambicana (OJM), mesmo não sendo membro efectivo.

Em 1986, vai para Paris fazer a licenciatura em Antropologia, na Universidade Paris 8, onde fica até 1988, altura em que regressa e continua a trabalhar na ARPAC, já em Maputo. Entretanto, pede uma licença sem vencimento e trabalha 2 anos como consultora na área de HIV/SIDA para o Ministério da Saúde. Em 1993, entra para os quadros da UEM como docente. Nesse período, regressa a Paris para, na mesma universidade, fazer o mestrado 2 em Antropologia (1998).

O seu interesse por questões de género surgiu na altura em que fez pesquisas sobre o impacto do HIV/SIDA, uma vez que as mulheres são as mais afectadas pela doença. Começou a participar sistematicamente em pesquisas quando colaborou com a WLSA, na época ainda ligada ao CEA/UEM, como por exemplo a pesquisa Famílias em Contexto de Mudança (1997).

Sai da UEM em 2002, após pedir uma licença sem vencimento, para onde não regressou. Foi Coordenadora Nacional da WLSA Moçambique, para onde entrou efectivamente em 2002, e é actualmente coordenadora da área de Comunicação, Lobby e Advocacia. Responde também a solicitações de participação em palestras, aulas, apresentações, entre outros.

Sem dúvida uma das figuras mais importantes na luta pelos direitos humanos das mulheres, Maria José confessa que esta não é uma luta fácil: eu às vezes preferia, sei lá, defender os elefantes, porque as pessoas gostam mais dos elefantes que das mulheres, né? Portanto, é mais fácil defender o elefante, o rinoceronte, não matem, está a extinguir, do que as mulheres. Quer dizer, acho que a situação é claramente desfavorável nesse aspecto.

Para a pesquisadora, ser feminista “É um desafio, mas é muito interessante para mim também. Eu acho que aprendi muito nesta questão. Primeiro, a gente tem que estar muito forte, muito convicta do que pensa, para poder aguentar tanto embate. Mas há também um outro aspecto que eu não referi. É que ser feminista, para mim, é também uma grande solidariedade com todas as pessoas em situação de exclusão. Por isso é que eu acho que não é possível ter uma feminista que não defenda a democracia, outros oprimidos, que não esteja com a Lambda na luta para a sua regularização, etc. Então eu acho que essa experiência de ser mulher e de lidar com a exclusão nos…deveria, sei que há mulheres que não é assim, né? Mas a mim pelo menos levou-me a esta empatia com todas as pessoas que, de facto sofrem e estão em situação semelhante.”


Esta história de vida foi elaborada tendo como base uma série de entrevistas realizadas entre Maio e
Julho de 2017, por Catarina Casimiro Trindade, para a sua pesquisa de doutoramento.

“Género e cidadania: a emergência de um discurso feminino nos sindicatos em Moçambique. O caso dos Comités da Mulher Trabalhadora na Organização dos Trabalhadores de Moçambique (OTM) e no Sindicatos Livres e Independentes (SLIM)”, 1998.

Terezinha da Silva

Terezinha da Silva foi uma das primeiras moçambicanas a assumir-se como feminista no país. Assim se define “(…) porque defendo os direitos das mulheres. (…) Para mim não é só defender as mulheres, mas também defender o acesso aos recursos. E pensar sempre nos direitos das mulheres, aquilo que é o acesso a oportunidades e recursos”. É uma das maiores referências para mulheres de todas as gerações, não só pelo seu trabalho como pesquisadora, mas também pelo seu activismo em prol dos direitos humanos das mulheres, principalmente no que diz respeito ao combate à violência doméstica. Contribuiu grandemente para o processo de paz no país, participando em vários encontros de reconciliação entre membros da Frelimo e da RENAMO nas comunidades, assim como trabalhando com famílias e grupos vulneráveis, principalmente crianças e idosos. Fez parte da delegação que participou na Conferência de Beijing e participou activamente nas pesquisas sobre a situação legal das mulheres, assim como em todas as campanhas pela elaboração e aprovação de leis que protegem os direitos das mulheres. Esteve presente, também, em eventos e debates – nacionais e internacionais – sobre a situação da mulher em Moçambique, dando formações em todo o país. Foi Coordenadora Nacional da WLSA durante 13 anos, tendo contribuído para o reconhecimento e crescimento da organização.

Terezinha nasceu em 1947, na cidade da Beira, filha de pais nascidos em Goa. Aos 17 anos, mudou-se para Maputo para cursar Serviço Social. Após concluir o curso, começou a trabalhar no Instituto de Investigação Pesqueira, tendo dado aulas de alfabetização na Aldeia dos Pescadores. Transferida para o sector da Acção Social, no Ministério da Saúde, foi chefe do departamento de formação na área social. Após a independência do país, é transferida para a província de Cabo Delgado com a incumbência de reformular os objectivos da Acção Social. Ali, para além de ser responsável pela organização da Acção Social, trabalhou com deficientes físicos da guerra colonial, crianças órfãs e pessoa idosas. Nessa altura, colabora com a OMM principalmente na área social, visitando os bairros, prestando apoio psicológico, dando especial apoio às crianças e participando numa pesquisa sobre a situação da mulher na província, que foi apresentada na primeira conferência nacional da OMM, realizada em Maputo. Recebeu ainda treinamento militar devido ao início da guerra de desestabilização entre a Frelimo e a RENAMO – que durou de 1977 a 1992 -, principalmente devido aos ataques que sofriam, ataques esses que a marcaram profundamente. É transferida, em 1980, para a província de Niassa, continuando como chefe da Acção Social até 1982, quando volta novamente à província de Cabo Delgado como Directora Provincial de Saúde, cargo que exerceu durante 9 anos.

Em início dos anos 90, e após deixar o cargo, regressa a Maputo e volta a trabalhar brevemente como chefe da Acção Social, responsável pela área de formação, integrada no Departamento do Ministério da Saúde. Em 1992, conclui o mestrado (Master of Science) em Social Policy and Planning in Development Countries na Faculty of Economics and Political Science na Universidade de Londres. Em 1995, pede transferência para o CEA/UEM (Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane), onde começa a trabalhar como pesquisadora. Ainda no tempo em que trabalhava no Ministério, havia participado em algumas pesquisas da WLSA, na altura ligada ao NEM (Núcleo de Estudos da Mulher, no Centro de Estudos Africanos). Em 1997, e a convite do Reitor da UEM, ocupa o cargo de directora da UFICS (Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais), onde fica até 2000. Trabalhou durante 5 anos como Assessora do director do Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ), na área técnico-administrativa. Aproveitou a oportunidade para mobilizar a direcção do CFJJ para incluir um módulo de “Género no Judiciário” nos curricula de todos os cursos para magistrados que tiveram lugar naquela instituição, sendo ainda responsável pelo desenho, implementação e avaliação dos cursos.

Concorre, depois, à vaga de Coordenadora Nacional da WLSA Moçambique, nessa época já funcionando fora do CEA/UEM, cargo que ocupou até recentemente. Foi a primeira moçambicana a participar num curso de género fora do país, numa altura em que mal se falava sobre esse tema e em que havia pouquíssimas pesquisas na área. Sobre a sua participação no curso, Terezinha lembra que “(…) fui a primeira moçambicana. E my god, eu nem sabia o que era a palavra género, em inglês era gender e eu discutia com as minhas amigas latino-americanas, sobre isso. E estávamos muitas de África. Era eu e mais duas, a Sarah Longwe. Uma feminista da Zâmbia. Ela é uma grande especialista na área de género, feminista. Era eu, ela e mais duas de África, se não estou em erro, e eram algumas da América Latina. E todas nós tínhamos a mesma preocupação, porque para nós o género era o género feminino e o masculino, mesmo para a língua espanhola. Então foi assim uma aprendizagem, de ver que género, as relações de género, que não era masculino e feminino como aqui hoje ainda se fala nisso.”

Sobre a importância de lutar pela igualdade de género e dos avanços alcançados no país, Terezinha acredita que “(…) tu nunca podes ficar contente com o que tens ou o que fizeste, né? É por isso que ainda a luta continua. Não podes ficar satisfeita porque ainda há um grande caminho a percorrer. Há ainda a implementação e avaliação de todos os instrumentos internacionais, regionais e nacionais, a implementação correcta da legislação e do ordenamento jurídico em Moçambique.”


Esta história de vida foi elaborada tendo como base uma série de entrevistas realizadas entre Maio e Julho de 2017, por Catarina Casimiro Trindade, para a sua pesquisa de doutoramento.

Micky & Vanusa

Considero-me uma pessoa LGBT, com expressões de géneros masculinas, identidade de género feminina, orientação sexual lésbica. Nos momentos livres, gosto de ler livros de romance, que ajudam a fortalecer laços de amizades entre pessoas que me rodeiam e, principalmente no meu casamento, ajudam muito no que tange a respeito mútuo entre o casal. Gosto de dançar, porém a minha dança preferida é Kizomba. Manter boas amizades e conhecer novas pessoas que respeitam as diversidades das pessoas LGBT, pessoas engajadas na causa LGBT. Gosto de escutar música. Os meus Ídolos são o James Blunt, o John Legend, o Richard Bona e para finalizar os irmãos Calemas. Tenho escutado outras músicas tipo Barry White, mas sou mais apaixonada pelos ídolos mencionados acima.

A Micky Beula tem uma frase de militância para o seu dia-a-dia que vence qualquer tipo de discriminação, preconceito e estigma: Meu corpo, minhas regra e com a militância conquisto a igualdade cada vez mais.

A Micky Beula de hoje não é a mesma de ontem. Em todas as etapas da minha vida, a trajectória não foi nada fácil. Foi com muitas dificuldades que hoje me tornei esta pessoa activista social, líder e mais alguma coisa. Primeiro dizer que fiz de tudo nesta vida para nunca fraquejar, nunca tive a consciência de desistir, mesmo sendo difícil. Nunca desisti, sempre corri atrás dos meus sonhos. Quando a pessoa luta, corre atrás, demonstra interesse em aprender, sempre consegue. E quando tem pessoas que a apoiam, carrega consigo um sentimento de alívio e, perante a situação acima detalhada, se a pessoa não é forte o suficiente, desiste e vem o pensamento de suicídio, porque a pressão familiar é muito forte e, dentro da família, se não existe ninguém para te apoiar, desistes de todos os sonhos pelo simples facto de seres uma pessoa LGBT.

Vou partilhar a minha experiência sobre como sobrevivi na minha família até hoje. Antes mesmo de me tornar activista social, jovem adolescente com muitos sonhos privatizados pelo simples facto de me vestir com roupas masculinas, assim diz a sociedade. Bom, a minha mãe, os meus irmãos até gostavam do meu jeito de vestir, mas nada podiam fazer em relação à fúria do meu pai. Este zangava com tudo e com todos que me apoiavam, até porque nunca sentei com a minha família para falar sobre a minha orientação sexual. Se calhar, tive a sorte de ter irmãs que gostavam de ler muito revistas, entendia melhor nas suas leituras o que é ser uma mulher lésbica, tinha este sentimento de ser uma pessoa igual mas diferente, mas não sabia expressar ou interpretar o que é ser lésbica e tive esta sorte das minhas irmãs explicarem o significado de ser uma pessoa lésbica. O bom disso tudo é que sempre fui uma pessoa lúcida e consciente sobre a minha pessoa, sempre esteve claro em mim que não sou uma pessoa doente, que era diferente mas igual às outras meninas da minha infância. Isso sempre esteve consciente em mim e com este braço de apoio das minhas irmãs, foi uma bênção para mim, porque o meu pai não era fácil de aturar, em relação às exigência que fazia sobre a minha pessoa.

 Não vou detalhar o que passei, mas afirmo que passei por maus momentos, que transformei hoje em coisas boas porque não seria possível viver com isso hoje. Considero o sofrimento que passei como uma ferramenta da pessoa líder que hoje sou, os bloqueios que tive do meu pai hoje fizeram de mim uma pessoa forte. Como dizia anteriormente, a pressão familiar muda o ser humano, isto é, pode mudar positivamente ou negativamente, e eu mudei positivamente porque a minha entrega contou muito neste processo de militância, mas hoje agradeço à minha família pela força, apoio que sempre me deram. Enfrentava o meu pai graças aos meus irmãos. Para que percebam melhor, por enfrentar o meu pai, refiro-me não do tipo dente por dente e olho por olho. Enfrentava de forma respeitosa, sensibilizava-o sobre a pessoa que sou. Passaram-se muitos anos, mas nunca desisti. A Micky Beula na altura não tinha o conhecimento que tem hoje sobre pessoas LGBT, mas porque a minha preocupação maior era tornar-me uma pessoa activista social. Entreguei-me à causa LGBT e fui-me apercebendo que existem pessoas que nascem líderes e, com formações e capacitações, vão-se tornando líderes completas por nascença e pela formação. Eu me considero esta pessoa que nasceu líder, isto para dizer que faz parte da minha trajectória, até hoje que sou defensora dos direitos das pessoas LGBT.

Hoje, devido à minha entrega, estou preparada para lidar com tudo e com todos, quer conflitos internos, comunitários. Isso graças à minha total entrega e ao apoio das pessoas acima mencionadas. A oportunidade que a Lambda me deu reforçou muito o meu conhecimento sobre assuntos ligados a pessoas LGBT. E esta satisfação da minha pessoa não termina aqui. Porque sou um ser com sentimento, conheci uma mulher com a qual jogava futebol e, porque somos pessoas que tínhamos os mesmos sonhos, expressamos os nossos sentimento uma para a outra, o que resultou em um casamento tradicional. Queríamos sim um casamento civil, mas isso no nosso país não é possível devido à não aceitação de casamentos de pessoas do mesmo sexo. Mas porque o amor não é um simples papel de registo civil que define, assim o casal Micky Beula e Vanusa Abreu realizou o matrimónio à moda tradicional no dia 29 de outubro de 2016. Fazemos hoje 15 anos juntas e 4 anos de casamento à moda tradicional. O nosso amor apenas precisava do testemunho das nossas famílias e amigos e assim aconteceu com sucesso. Hoje somos uma família feliz com três filhos, dois rapazes e uma menina. Cláudio, o mais velho com 22 anos hoje, Tiago com 17 anos e Bianca com 11 anos. Confesso que não foi fácil sensibilizar os filhos a respeitar a relação das mães, foi difícil, mas foi possível até porque estamos conscientes que filho não faz a família, mas sim complementa a família. Existem estereótipos à volta de casais homossexuais, a sociedade descreve que um casal de pessoas do mesmo sexo não é família, consideram como família casais de sexo oposto e descrevem também que casais do mesmo sexo não podem ter filhos. O casal Micky Beula e Vanusa Abreu veio desmentir os dizeres da sociedade acima, descrevendo a sua história.

Somente o casal decide se quer ter filhos ou não, independentemente da sua orientação sexual. Estamos preparadas para receber as descargas da sociedade sobre as diversidades sexuais da comunidade LGBT, porque muitos têm fraco conhecimento sobre pessoas LGBT. Sabemos que a sociedade não está preparada para aceitar pessoas homossexuais, mas estamos dispostas a lutar pela causa de forma civilizada e porque, para o estado moçambicano, ser homossexual não é crime. Com o esforço da Lambda, em 2010 a homossexualidade foi retirada da lista de crimes e hoje a homossexualidade não é vista como crime. Mais uma luta da Lambda que teve sucesso. No que tange às conquistas, são várias. Eu, como pessoa, tive várias conquistas e, como profissional, os feitos ditam pelo historial acima citado.

O texto acima revela as emoções e superações. O casamento foi um momento emocionante, onde juntamos as duas famílias, amigos e vizinhos. Superações foram várias: o meu pai, que não aceitava que a filha fosse homossexual e hoje a respeita. São filhos a quem se aponta o dedo por terem duas mães e a sociedade que te exclui em muitas coisas. Ainda que subescrevo que é uma superação ainda em curso, porque ainda sentimos pressão da sociedade. Mas porque queremos vencer, sempre tapamos com pano preto e seguimos com o pano cor-de- rosa e isto é uma experiência que resulta.

Hoje continuo sendo activista social, ocupando o cargo de Oficial de Advocacia de Género e Direitos Humanos na Lambda, em parceria com a FDC no projecto Viva +.

O que mais me tocou neste processo da luta pela defesa dos direitos das mulheres é o engajamento que as mesmas têm sobre a luta dos seus direitos, assim como a empatia que têm com os direitos das mulheres lésbicas. O meu testemunho sobre o engajamento das mulheres em vários processos, e a entrega de todas com o apoio da grande mulher Heike, esta que empoderou muitas mulheres em matéria de liderança. Desde já, agradeço à Lambda e à Heike pelas formações e capacitações que tornaram a mim e às outras mulheres líderes, activistas sociais.

Sinto-me feliz e realizada para mais uma batalha. As sensibilizações e debates comunitários, assim como os eventos públicos com a temática LGBT, foram as melhores armas usadas para educar a sociedade a respeitar os direitos humanos das pessoas LGBT, porque as dinâmicas, ou seja, as estratégias usadas para informar a sociedade sobre a existência das pessoas LGBT eram fortes e directas, através de peças teatrais com a temática LGBT, eventos públicos, isto é, passarelas organizadas pelos próprios membros da comunidade, com vista a educar e visibilizar a comunidade LGBT. Desta forma, disponibilizávamos informação abrangente e positiva sobre pessoas LGBT. Esta militância é alegria total para mim, saber que mais de 5000 mil pessoas foram sensibilizadas em matéria educativa sobre os direitos das pessoas LGBT em menos de 3 anos.

O que falta mudar é a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a auto-estima da mulher, reportar todos os casos de violência física e principalmente violência doméstica, capacitação em matérias de direitos humanos para todas mulheres, promoção de cargos de tomada de decisão equitativos, auto-reconhecimento das qualidades que a mulher tem no seio familiar e profissional e o direito da mulher ser chefe de família, porque é visto que a mulher não sabe que é chefe da família. Para tornar todos os sectores fortes, é preciso haver troca de experiência com regularidade entre os sectores parceiros, publicação de histórias de superação das mulheres, como forma de encorajarem outras organizações a trabalhar sobre esta temática, divulgar o trabalho das mulheres através dos média, redes sociais e entre outras redes que podem trazer a visibilidade da mulher.

A Micky Beula antes sonhava em dar volta ao mundo através de um cruzeiro, mas como o tempo muda, as coisas vão ficando cada vez mais diferentes e difíceis. Ainda tenho este sonho, mas agora o meu sonho principal tem mais a ver com assuntos familiares, como terminar a minha casa e construir um restaurante com decorações de cores do amor, que são as cores LGBT.

NB: Não escrevi a idade do casal porque não importa, importam os resultados, as conquistas, os desafios, as emoções e os passos subsequentes.

19 de Junho de 2020

Micky Beula


Micky Beula é uma jovem moçambicana e activista social dos direitos das pessoas LGBT desde os seus 16 anos de idade, antes mesmo da criação da única organização em Moçambique que defende os direitos das pessoas LGBT, a Lambda. Ela trabalha nesta ONG e é estudante de Ciências Jurídicas e Investigação Criminal.

Ancha Rute

Nampula


Eu chamo-me Ancha Rute, tenho 36 anos, sou casada, só tenho uma filha que já concluiu a 12ª classe. Sou camponesa, trabalho na minha machamba e faço pequenos negócios. Sou membro da Associação Filipe Samuel Magaia e sou Presidente da União Distrital de Nampula.

A minha história como membro da Associação começa quando eu decidi que queria fazer machamba. Para conseguir, filiei-me a uma associação. Depois de ser membro, recebi a minha parcela de terra individual para fazer as minhas actividades e havia a parcela comum onde todos trabalhavam nela. Estando na Associação, eu tinha de cumprir com as normas e regulamentos dos Estatutos, bem como usufruir dos direitos e cumprir com os deveres dos membros. Participava nos encontros, e quando faltasse, eu tinha de justificar. As vezes que faltei foi por estar doente ou ter a criança doente. Eu era muito cumpridora e foi por isso que quando concorri, a Assembleia elegeu-me como vice-presidente da Associação. O Presidente eleito era um pouco velho, por isso eu era quem fazia a maior parte das actividade de direcção sob a orientação do presidente. Há quatro anos, em 2015, o Presidente ficou doente e faleceu e eu assumi a pasta da presidência da Associação. Nessa altura, eu fazia parte da comissão distrital que estava a criar a União distrital dos Camponeses de Nampula que preparou a Primeira Assembleia Eleitoral. Concorri para o posto de Presidente da União Distrital e consegui ser eleita. Tendo sido eleita para a Presidência da União Distrital, falei com os membros da Associação, explicando a minha situação e na necessidade de se realizar eleições antecipadas. Contribuímos e realizamos a Assembleia para eleger outra pessoa como presidente da Associação, porque eu já não podia ser. Foi assim que se elegeu a senhora Ema como presidente da Associação e eu fiquei como Presidente da União Distrital dos Camponeses do Distrito de Nampula. Já havia a União Distrital, contudo estava baseada em Rapale. Quando se fez a nova divisão administrativa e Rapale passou a ser um Distrito independente de Nampula, foi preciso criar a União Distrital de Camponeses do novo Distrito de Nampula. A anteriormente criada, em Rapale, passou a ser do distrito de Rapale.

Tive dificuldades próprias do trabalho que eu fazia na Associação, pois eu tinha de fazer o trabalho activo que o presidente não era capaz de fazer por ser idoso. No início, quando eu quis fazer machamba, o meu marido não aceitava, porque desconfiava que eu ia ter com outros homens e não ia à machamba. No primeiro ano, depois de eu produzir e o produto estar pronto para a colheita, eu levei o meu marido para ir ver a machamba. Quando chegou lá e viu o que eu tinha feito, ficou admirado, disse que não imaginava que eu, de facto, estivesse a trabalhar na machamba e grande como era. A partir dessa altura, ficou tudo bem. Mas depois, mais tarde, eu me divorciei dele e agora estou com outra pessoa. Ele não me proíbe de fazer seja o que for, aceita que eu esteja na Associação. Não sei dizer porque é que me divorciei, o meu ex-marido também não sabe dizer, talvez tenha sido o diabo que veio e destruiu o meu casamento. O meu sentimento em relação às conquistas, sinto-me uma mulher capaz, pois o meu percurso foi complexo. Sinto o peso da responsabilidade que tenho, mas como trabalho em equipa, as ideias são debatidas em conjunto e as decisões são tomadas também em conjunto. Sou Presidente, mas não trabalho sozinha, tenho a colaboração dos outros membros. Desta forma temos bons resultados.

Sobre os ganhos das mulheres na batalha do Direitos das Mulheres, consigo notar que já há mulheres em postos de liderança em instituições e organizações. Hoje não é como antes. Antes uma mulher casada tinha como responsabilidade cuidar da casa e fazer filhos somente. Para uma mulher pertencer a uma Associação era difícil, sair de casa para fazer os seus negócios era difícil, ter emprego era difícil. Não era difícil por não existir, mas porque nessa altura, uma mulher casada não podia sair de casa.

Mas agora a mulher consegue trabalhar, fazer os seus negócios, pertencer a qualquer organização. Para mim, isso é muito valioso, é uma mudança para nós, mulheres. Até algumas mulheres estão em posições do topo de uma Instituição ou Organização. Já não é como antes. Essa mudança é muito importante para as mulheres. Por Exemplo: Eu estou a trabalhar e o meu marido não tem como alimentar os nossos filhos, eu posso fazê-lo. Com o pouco que eu ganho, posso comprar milho, pão, etc. Antes, havia muitos problemas no lar porque as mulheres queriam comprar capulana, roupa para si, não tinham dinheiro próprio e tinham de pedir ao marido. A mulher quer dinheiro, o marido não dá, zangam-se, discutem e agridem-se. Isso era um problema sério. Os maridos só davam dinheiro para comida, carvão. Para as outras necessidades pessoais não davam.

Mas se a mulher trabalha, não só contribui para as despesas da casa, mas também consegue comprar o que ela quer para ela própria, inclusive consegue apoiar a sua própria família. Isso reduz os conflitos entre marido e mulher. É claro que se o marido não dá, mesmo ela tendo o seu próprio dinheiro, a mulher lamenta e queixa-se, mas pelo menos ela tem o seu próprio dinheiro para fazer o que ela quiser. As mulheres passaram a ter a liberdade de fazer negócios e ter o seu próprio ganho, contudo, ela tem de respeitar o marido. Quero dizer que, apesar de o dinheiro ser meu e poder fazer o que quero com ele, não devo, por exemplo, comprar um terreno sem informar ao meu marido. Não devo gastar e fazer investimentos escondidos, sem que o meu marido saiba. Eu concordo que a mulher compre um terreno só dela, porque se por acaso a mulher morrer, a família dela pode receber o terreno como herança. Quando a mulher morre e não tem bens pessoais em se parado, a sua família não recebe nenhuma herança que tenha sido do casal, tudo que era do casal fica com o marido. Se ela tiver um terreno só dela, esse terreno fica com a família da mulher e não com o marido.

Sobre os Direitos das mulheres o que ainda nos falta é que a maioria das mulheres sejam ouvidas. Eu quando falo com o meu marido sobre qualquer questão com a qual não concordo, ele me ouve, mas ainda existem muitos homem que não ouvem as suas mulheres. As mulheres que estão nas cidades são diferentes das mulheres que estão no campo, em lugares recônditos, nas comunidades. As mulheres estão sendo violadas psicologicamente, fisicamente. Encontramos mulheres que ano sim, ano não estão a fazer filhos. Isso é violência. Nem tem tempo para ir à machamba, não consegue fazer a alfabetização por estar a ter filhos seguidos e o marido não diz nada. O que ele faz é deixar a mulher com quatro ou cinco filhos e procurar uma outra mulher mais jovem sem filhos. A mulher fica só. É uma violência. Outro aspecto é a violência física. Os homens por pequena coisa, batem na mulher. Então eu acho que nas zonas rurais é preciso fazer trabalho sobre Direitos de Saúde Sexual e Reprodutiva e sobre a violência contra as mulheres.

O meu sonho é fazer crescer a União Distrital, para que quando eu saia as pessoas saibam que quem construiu a União Distrital fui eu. Como mulher gostaria de subir e ser Presidente da União Provincial, União Nacional, participar mais em encontros nacionais do movimento, ter mais capacitações na área de liderança feminina. Eu gosto muito do movimento camponês. Esta doença que temos agora (COVID- 19) é estranha e fez parar muita coisa, muitas actividades, não só em Moçambique, mas no mundo inteiro. Mas é preciso trabalhar com vontade e unidos, para podermos vencer. Eu sinto-me insatisfeita, porque existem algumas pessoas que ignoram as medidas de prevenção e não devia ser assim. Nós todos temos de ser responsáveis a partir de casa. Existem algumas pessoas que só põem a máscara quando vêm a autoridade por perto. Não estamos a ter medo da doença, estamos a ter medo da Polícia. Isto acontece porque há pessoas que não acreditam na doença, querem ver a olho nu e a doença não se vê a olho nu.

A violência na comunidade aumentou em dado momento porque a Polícia chamboqueava ou dava bofetadas a quem não estivesse com máscara. A Polícia recolheu as crianças que andavam na rua a brincar ou a comprar comida ou outras coisas que os adultos mandavam ou a vender nos mercados.  Eu não vi, mas muita gente falou nisso. Os pais e/ou Encarregados de Educação tiveram de ir à Polícia para ir buscá-las. A comunidade reclamou, falou-se muito nisso. Na cidade de Nampula parou, mas no campo continuam a fazer. Eu acho que é muito importante cuidarmo-nos, mas não na base da violência. Nos países desenvolvidos, que têm todas as condições, a doença matou muita gente, o que será de nós, em Moçambique, sem condições, se não nos cuidarmos. Não temos hospitais adequados, não temos remédios. Acho que todos nós somos responsáveis a partir de casa até na sociedade, manter a higiene e respeitar as normas determinadas pelo Governo. Para terminar, dizer que nós, como mulheres, temos de saber compartilhar com os nossos maridos, com os nossos colegas no trabalho. Na Associação estamos em conflito, porque temos novos membros que não sabem o que é associativismo. Eles precisam de dominar o conceito de associativismo. E por fim dizer que nós mulheres temos de saber dizer sim, mas também temos de saber dizer não. Há momentos em que é sim, mas há momentos e coisas que é não. Não é não.

Maputo, 20 de Julho de 2020

Entrevista por Joana M. M. Ou-chim (1) .
Fotografias de Maia  Dionísio Lacerda.


(1) Joana M. M. Ou-chim é consultora na área de género e desenvolvimento em Moçambique.


Isabel Casimiro

Pesquisadora, académica e activista pelos direitos humanos das mulheres, Isabel Casimiro foi uma das primeiras moçambicanas a fazer pesquisas na área de género, além de ter sido a segunda a participar de um curso de género fora do país. Foi também uma das primeiras mulheres a assumir-se feminista e, como ela mesma lembra, não foi fácil, uma vez que “ser-se feminista era ser anti-homem, era ser-se considerada uma lésbica, era ser considerada uma mulher triste, sem homem, que não rapava os pêlos, desgraçada, quase que às tantas era uma puta também. Ao princípio, era muito complicado, sobretudo por eu ser branca. Porque infelizmente as primeiras a declararem-se feministas foram brancas e isto num contexto onde nem sequer 1% da população é branca e onde se diz que o feminismo é algo que vem de fora, que foi importado por essas cooperantes que vieram para cá. Então foi muito complicado. Não foi só o género que precisou de esperar até se falar nele, até ser nomeado, foi também a questão do feminismo.

Nascida em 1955 na aldeia de Iapala, na província nortenha de Nampula, foi a terceira filha e a primeira (de um total de 5) a nascer em Moçambique. Os seus pais, ele médico e ela técnica de saúde, ambos pertencentes ao Partido Comunista Português, haviam se exilado no país em 1952, após o partido ter sido declarado ilegal. Viveu toda a infância e adolescência na província de Nampula, só se mudando para Maputo em 1973, para fazer o curso de História na então chamada Universidade de Lourenço Marques . Em 1974, após concluir o primeiro ano do bacharelado, e em meio ao contexto do 25 de Abril , vai de férias a Nampula e lá é convidada a dar aulas de língua portuguesa no liceu onde havia estudado, tendo também se envolvido nas actividades da FRELIMO ao nível da província (principalmente campanhas de alfabetização). Volta em 1977 para Maputo e recomeça o bacharelado em História, que finaliza em 1979. É nessa época que se torna membro da Organização da Mulher Moçambicana e da Organização da Juventude Moçambicana (OJM). Em 1980, é contratada para trabalhar no Centro de Estudos Africanos (CEA), onde permanece até hoje como Professora Auxiliar e pesquisadora, tendo sido directora de 1990 a 1995.

Em 1982, é convidada pelo então director do CEA, Aquino de Bragança, para ser Directora Adjunta, cargo que exerceu durante um ano. De 1984 a 1986 realizou o trabalho de licenciatura em História sobre a participação da mulher na Luta Armada de Libertação Nacional, tendo assim começado o seu interesse pelos direitos das mulheres e pelos movimentos feministas. Em 1987, a convite da Fundação Ford, é a segunda moçambicana (depois de Terezinha da Silva) a participar no curso Gender and Development do Institute of Development Studies (IDS) da Universidade de Sussex, com a duração de três meses. Em 1988/89, com o apoio da Fundação Ford, fundou, junto com colegas de áreas diversas, o Núcleo de Estudos da Mulher (NEM), mais tarde rebatizado de Departamento de Estudos da Mulher e Género (DEMEG) no CEA. Ela recorda como foi desafiador começar a introduzir e a trabalhar com um conceito tão novo como o de género, porque “as pessoas quando ouviam falar de género, falavam de géneros alimentícios. Portanto, a gente explicava que quando a gente estava a falar de género nós estávamos a falar de mulheres e de homens e das relações de poder entre mulheres e homens. E foi penetrando, devagarinho.”

De 1990 a 1995, fez parte do grupo fundador, a nível regional, do Projecto WLSA, tendo mais tarde criado e sido a primeira coordenadora nacional da WLSA Moçambique (1989), da qual é, desde 2015, presidente do Conselho de Direcção. Foi (e ainda é) membro de várias organizações de mulheres, tendo participado na criação de algumas delas, como é o caso da associação Mulher, Lei e Desenvolvimento (MULEIDE) e do Fórum Mulher (do qual foi presidente de 1993 a 2001 e de 2006 a 2015). Participou, junto com um grupo de mais de 50 mulheres (e alguns homens) de organizações da sociedade civil e do governo, na Conferência de Beijing, um marco histórico na luta pelos direitos humanos das mulheres. Em 1994, por proposta do Partido Frelimo (do qual é membro), integrou a lista de deputados para a Assembleia da República, no âmbito das primeiras eleições legislativas multipartidárias, cargo que ocupou até 1999. Realizou o mestrado (1996-1999) e o doutorado (2003-2008) em Sociologia, na Universidade de Coimbra, sendo considerados os resultados das suas pesquisas importantes contribuições para os estudos de género em Moçambique.

Em 2017, Isabel juntou-se a um grande grupo de mulheres académicas, pesquisadoras e activistas de Moçambique, Brasil e Portugal para organizar o 14º Congresso Mundo de Mulheres, a realizar-se em Maputo em 2021 (depois de ter sido adiado em virtude do COVID-19). Este é um evento internacional e interdisciplinar que congrega mulheres e homens de diferentes áreas da academia e do activismo de todo o mundo, cujo objectivo principal é a criação de um espaço de debate que inclui diversos actores que reflectem e dialogam sobre as suas acções e experiências.

Além do seu activismo feminista e participação na criação de uma série de organizações de mulheres no país, possui uma vasta e importante produção académica centrada em temas como as relações de género, o feminismo, os direitos humanos das mulheres, a participação das mulheres na luta armada, os movimentos de mulheres, a pesquisa-acção, as trajectórias das organizações de mulheres e dos movimento de mulheres, a teoria de género em Moçambique, entre outros. É importante destacar a importância e relevância não só da sua produção académica feminista e das suas colegas moçambicanas, como também de mulheres de outros países africanos, principalmente os lusófonos, que raramente possuem a circulação e reconhecimento que merecem.

Para Isabel, ser feminista “significa lutar pelos direitos das mulheres, lutar pelas mesmas oportunidades num contexto de pessoas diferentes. Porque nós somos diferentes. Quaisquer que sejam as orientações, nós somos diferentes. Mas devemos ter as mesmas oportunidades, independentemente dessas diferenças. E é assim que eu me entendo como feminista, no sentido de uma sociedade solidária, uma sociedade de seres iguais.”


(1) Esta história de vida foi elaborada tendo como base uma série de entrevistas realizadas entre Maio e Julho de 2017, por Catarina Casimiro Trindade, para a sua pesquisa de doutoramento.

(2) Em 1976, a universidade passa a ter o nome de Universidade Eduardo Mondlane.

(3) O 25 de Abril de 1974, também conhecido como a Revolução dos Cravos, ocorrido em Portugal, resultou de um movimento político e social que depôs o regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933, dando início ao processo de implantação de um regime democrático e determinando o fim das guerras coloniais no continente africano.

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