FEMINISMOZ

Cecília Rachide

Chamo-me Cecília Rachide, sou casada há 33 anos e tenho 55 anos. Nasci, cresci, casei e tive filhos em Mazeze. Vivi sempre aqui nesta casa (terreno). Sou camponesa e filha de pais camponeses. Tive 10 filhos, dos quais cinco faleceram e cinco estão vivos: dois rapazes e três meninas. Neste momento, eu vivo com o meu marido e duas filhas.

Os rapazes estão a estudar, uma menina está casada e das duas mais novas que vivem comigo uma estuda e a outra já não estuda porque não temos dinheiro, ela fez a sétima classe. Eu só fiz a primeira classe há muito tempo, não me lembro da data.

Eu cresci com a minha mãe e o meu padrasto. Quando a minha mãe estava grávida de dois meses de mim, o meu pai abandonou-a, arranjou outra mulher e foi-se embora. Nós somos sete irmãos/ãs: três mulheres e quatro homens.

Cresci com três das minhas irmãs, os rapazes cresceram com os meus tios. Uma coisa de que me lembro com carinho quando era criança, é que o meu padrasto amava-me muito. Ele faleceu no ano passado, a minha mãe ainda está viva. Penso assim porque ele comprava-me sapatos para eu ir à escola e nessa altura era muito difícil alguém como nós ter sapatos. Por isso digo que o meu padrasto gostava muito de mim. Eu é que deixei de estudar por maluquice da minha cabeça, a minha cabeça não tinha juízo. Os meus irmãos todos estudaram e são professores. Os meus pais eram religiosos, ambos muçulmanos. Em casa, quem controlava e guardava o dinheiro era o meu pai. Por exemplo, quando eu fiz os ritos de iniciação, foi a minha mãe quem preparou, mas ela teve de pedir o dinheiro ao meu pai. Os meus pais não fizeram parte de nenhuma associação.

Casei-me muito jovem com o meu primeiro marido e depois divorciei-me. Depois da separação, fiquei muito tempo sem querer casar-me. O meu primeiro marido também abandonou-me por ter casado com outra mulher. Tive quatro filhos com ele, dos quais três faleceram. Mais tarde casei-me com o meu actual marido, nessa altura só tinha um filho vivo. O meu segundo marido é camponês e é Shehe, por isso casamo-nos religiosamente. Mas, primeiro, o meu marido e os tios foram falar com os meus pais e pagaram 250,00MZN aos meus pais para poder casar-se comigo.

Deram o dinheiro à minha mãe porque o meu pai já não vivia comigo. Não deram ao meu padrasto por não ser meu pai biológico. Eu tenho uma filha casada. Quando foi o casamento dela, o marido dela deu dinheiro ao meu marido.

Nós usamos o dinheiro para comparar cabritos que temos aqui no quintal. Quando estes cabritos tiverem crias, vou dar uma à minha filha e os outros serão usados para os ritos de iniciação das irmãs. Quando nós morrermos esses cabritos vão ficar com a minha filha, cujo dinheiro foi o marido que nos deu porque são dela.

Ambos somos religiosos, muçulmanos, somos membros da Associação 7 de Abril. Eu é que cuido das crianças, cozinho e cuido da casa. O meu marido ajuda a varrer o quintal, às vezes carrega lenha. Aqui em casa quem guarda o dinheiro é o meu marido, mas quem gasta sou eu. Compro cama, comida e outras necessidades da casa. O meu marido é quem vende os produtos da machamba. Sou muito feliz no meu casamento, amo muito o meu marido, ele não me bate, trata-me muito bem. Se eu ficar viúva não me vou casar novamente.

Na comunidade, eu faço parte de uma comissão de mulheres de gestão de alguns bens comuns, como o poço. Esta comissão é constituída por 18 mulheres. São as pessoas que recebem informações e passam para a comunidade e zelam para que as coisas funcionem bem. O meu marido sensibiliza a comunidade para que rezem, para que vão à mesquita.

Comecei a ir à machamba com cinco anos. A minha primeira enxada foi a minha mãe que me deu. Era uma enxada de bicos que vendiam na loja. Depois as lojas deixaram de vender este tipo de enxada e os ferreiros começam a fazer. A minha primeira enxada era da minha mãe, não era nova. Ela usou e quando ficou gasta deu-me. Usei essa enxada até ficar toda gasta. Contudo, já tive muitas enxadas novas. Tive a minha primeira enxada nova aos 17 anos.

Foi a minha mãe quem comprou para mim. Era de forma de bico, mas comprada na loja. Eu usei até se gastar toda.

Não tinha ainda filhos/as com idade de ir à machamba. Mais tarde, quando tive filhas, eu dei a elas enxadas em forma de bico que eu já tinha usado e estavam gastas, mas nessa altura já não vendiam na loja, só no ferreiro. Quer dizer, o que a minha mãe fez comigo eu fiz às minhas filhas: dar-lhes as enxadas que usei primeiro.

As minhas enxadas novas foram compradas pelo meu marido porque o dinheiro é dele. Eu uso enxadas de ferreiro (bico) e da loja (argola), mas a de ferreiro é que é mais importante, porque foi a que a mãe me ensinou a usar. Esta enxada de ferreiro dá para fazer muitas coisas para além da machamba. Uso para limpar as campas, cortar o capim no mato para cobrir a casa, entre outras coisas. A enxada de argola não dá para fazer esses trabalhos. O pau da enxada é escolhido por mim, mas quem corta e monta na enxada é o meu marido. Por exemplo, quando estamos a voltar da machamba, estamos a andar, eu vejo um tronco que acho que dá para a minha enxada, digo ao meu marido e ele vai e corta o tronco. Eu é que determino a altura do cabo da minha enxada. Eu não monto porque não sei fazer. Eu uso esta altura porque foi a altura que a minha mãe determinou quando me deu a minha primeira enxada. Da mesma forma, a altura que eu determinei para as enxadas das minhas filhas é a que elas usam até agora.

Se eu tiver uma enxada com um cabo mais alto ou mais curto, não vou conseguir usar a enxada. Eu gosto mais da enxada de ferreiro, mas o meu marido é que decide qual é que compra. Para mim, a enxada do ferreiro é a melhor, porque quando compramos com ele podemos negociar o preço e ele baixa, mas na loja o comerciante nunca baixa o preço, não aceita negociar. O ferreiro baixa o preço quando o marido vai ajudar a fazer a enxada, ou quando eu peço por não ter dinheiro, ele compreende o facto e baixa o preço. Também a enxada de ferreiro é mais leve, trabalho
bem, não cansa. A enxada da loja (argola) cansa os braços, é muito pesada e cansa depressa.

Eu nunca pensei em ter um tipo de enxada diferente porque nunca vi nada diferente. Não posso pensar em uma coisa que não vi nem conheço. Gostaria de ver esse outro tipo de enxada, gostaria que houvesse mais ferrereiros para fazerem muitas enxadas para produzirmos muito na machamba, pois teremos muitas enxadas.

Entrevista por Joana Ou-chim 2 .


1 Trechos da história de vida de Cecília Rachide no Projeto de pesquisas sobre o uso da enxada e as condições de genero da Oxfam Solidarité Belgica em Moçambique. Financiado pela Fundação Bill e Melinda Gate. Data da entrevista: 3 de Março de 2014. Localidade Mazeze sede, Distrito de Chiúre, província de Cabo Delgado. Entrevista feita em Macua por Joana Ou-chim com tradução de Catarina Muamudo Ali.

2 Joana Ou-chim é consultora na area de género e desenvolvimento em Moçambique.

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