Chamo-me Saminha Jahali, tenho 57 anos, sou casada e sou camponesa. Tenho quatro filhos: três meninas e um rapaz. Perdi cinco filhos/as. Nasci em Tutua (uma aldeia perto de Katapua). Vim viver para Katapua há sete anos. Casei em Tutua, mas o meu marido é de Katupua. O meu pai já faleceu, mas a minha mãe está viva. Tenho três irmãs e dois irmãos. Perdi três irmãos/ãs. Eu sou a segunda filha dos meus pais. Vivo com o meu marido e o meu filho.
O meu pai era miliciano e a minha mãe era camponesa. Eu não estudei, porque nasci no tempo da guerra e mandavam-nos à machamba. Nenhuma das minhas irmãs estudou. Um irmão é que estudou, mas é camponês. Eu, quando era criança, ia à machamba e ajudava a minha mãe com as tarefas da casa: lavar louça, cozinhar, varrer, etc. Os meus pais eram religiosos, muçulmanos, iam à mesquita.
Eles não faziam parte de um grupo de trabalho comunitário. Na minha casa, era a minha mãe quem guardava o dinheiro, mas era o meu pai quem vendia os produtos da machamba. Quando eu era criança, era feliz porque tratavam-me bem, não zangavam muito comigo. Uma coisa de que me lembro é que o meu pai punha-me sempre no colo e eu sentia-me muito feliz e amada.
Casei-me muito jovem, não me lembro quando. Eu é que escolhi, gostávamos um do outro. O meu marido é camponês. Lembro-me que para me casar o meu marido foi à casa dos meus pais com o tio.
Pediu a minha mão ao meu pai e pagou 150,00 Escudos (lobolo/mahari (em macua) = dote). Porque éramos muito jovens quando casamos, tivemos de passar por ritos de iniciação juntos, eu e o meu marido, durante dois anos. Quem fez os ritos foi a minha avó materna e foram feitos em casa, no quintal.
As minhas três filhas já estão casadas e têm filhos/as. O rapaz vive comigo e estuda. As minhas três filhas passaram pelos ritos de iniciação. Quando as filhas tiveram a primeira menstruação, eu fui falar com a minha mãe, que organizou os ritos com as matronas da localidade. Os rapazes fazem dois tipos de ritos: um quando adolescentes e o segundo quando têm o primeiro filho. Neste segundo rito, o rapaz passa a ter um outro nome por passar a ser pai. O meu filho também já fez o primeiro, mas ainda não fez o segundo porque ainda não é pai.
Eu não me lembro quantos anos tinha quando recebi a minha primeira enxada. Sei que era da minha mãe e estava gasta. Foi comprada no ferreiro (de bico). Eu usei essa enxada até se gastar toda. Eu usava a enxada na machamba para sachar 3 , fazer a lavoura, colher e também carregava os produtos para casa. Enquanto eu vivi com os meus pais e era criança, não tive enxadas novas, diziam que era muito pesada para mim. Quando cresci, antes de me casar, a minha mãe comprou-me uma enxada nova. Depois de casar-me, passou a ser o meu marido a comprar. Antes das minhas filhas se casarem eu dei enxadas novas do ferreiro (bico) que o meu marido comprava, mas para o rapaz foi sempre da loja (argola), porque a enxada da loja exige força e o homem tem mais força. Para mim, a melhor enxada é a do ferreiro porque pesa menos. Há outros trabalhos que faço com essa enxada, como tirar areia a abrir cova. Para cortar capim, para cobrir a casa, uso a foice, que também serve para colher arroz.
Foi o meu marido que escolheu e colocou o cabo da minha enxada. Também é ele quem afia porque eu não sei fazer. O cabo da minha enxada é curvo, enquanto o do meu filho e marido é direito, porque o homem abaixa pouco e a mulher abaixa muito. A mulher abaixa muito porque tem menos força, enquanto o homem tem mais força e não precisa se abaixar muito. Podemos ver que a mulher envelhece mais cedo, porque tem menos força.
Eu sou feliz por ser casada, não sofro muito, isto é, o meu marido não zanga comigo. Gosto muito do meu marido, por isso estou com ele até agora. Nunca me bateu, como à vontade sem que ele controle qualquer comida.
Nunca pensei numa enxada diferente para mim, prefiro a do ferreiro, mas agora os ferreiros não têm material para fazer. Gostaria de ter uma enxada diferente, sim, com cabo direito ou curvo. Não uso cabo direito porque acostumei-me, aprendi a pegar na parte de baixo, por isso não consigo mudar agora e eu também ensinei as minhas filhas assim. Aquilo que eu aprendi com a minha mãe, ensinei às minhas filhas.
Entrevista por Joana Ou-chim 2 .
1 Trechos da história de vida de Saminha Jahali no Projeto de pesquisas sobre o uso da enxada e as condições de genero da Oxfam Solidarité Belgica em Moçambique. Financiado pela Fundação Bill e Melinda Gate. Data da entrevista: 4 de Março de 2014 Localidade de Katapua sede, Distrito de Chiúre, província de Cabo Delgado. Entrevista feita em Macua por Joana Ou-chim com tradução de Vestina Florêncio Vololia.
2 Joana Ou-chim é consultora na área de género e desenvolvimento em Moçambique.
3 Cavar a terra usando sacho; mondar (arrancar ervas daninhas de uma plantação ou de um jardim; desbastar árvore; limpar
retirando o que é prejudicial). Disponível em: www.priberam.pt/sanchar e www.priberam.pt/mondar. Acesso em 20, julho.,2015.