Neste mês de Junho, em que ficaram expostas as várias promessas não cumpridas dos 45 anos da independência, uma notícia em particular encheu de frustração e de grande mágoa as e os cidadãs/dãos preocupadas/os com a democracia, a justiça e a igualdade, que foi o Acórdão da 2a Secção Criminal de Recurso, do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, de 12 de Junho de 2020, que inocentou Rofino Licuco da acusação de violência física grave contra a pessoa de Josina Z. Machel, que resultou para esta na perda de um olho.
Esta decisão, a todos os títulos incompreensível, é não só injusta e irresponsável, provocando grande dano à vítima, como também se repercute gravemente na maneira como o país vai doravante enquadrar os crimes de violência doméstica. Por estes motivos, nós, organizações da sociedade civil, empenhadas na defesa dos direitos humanos, vimos por este meio repudiar e lamentar a decisão do tribunal de recurso, que foi lida com grande repulsa e pesar.
Durante longos anos, apesar de ter inscrita a igualdade de direitos entre mulheres e homens desde a Constituição de 1975, foi preciso lutar para garantir a igualdade de direitos no seio da família e das relações de conjugalidade, para desconstruir a violência doméstica como uma situação “natural” da vida em casal e desvendar a sua natureza criminal, e também para impor a ideia de que a cidadania não termina à porta de casa, desafiando a noção comum de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”.
Foram muitos anos, foram debates públicos, marchas e comunicados na imprensa, mas finalmente, e sob muita oposição, conseguiu-se aprovar a lei contra a violência doméstica, Lei no 29/2009, de 29 de Setembro. Mercê mesmo dessa oposição fizeram-se alterações na proposta de lei que colidiram com a lógica interna de criminalização do agressor, apoio da vítima e educação para não mais se reproduzir a desigualdade e a violência na família. No entanto, e apesar disso, a Lei no 29/2009 foi importante porque passou a ideia de que, para o Estado Moçambicano, era inaceitável que se tratassem as mulheres como cidadãs de segunda e subordinadas a uma tutela masculina com poderes para usar meios de coacção física como forma de controlo.
Ter esta lei não significou automaticamente que foram removidos todos os obstáculos à criminalização da violência doméstica, pois continuou a ser preciso lutar contra os preconceitos não só do público em geral, mas dos agentes da justiça também. Uma parte dos agentes policiais, procuradores e juízes, não concordando com os valores que a Lei no 29/2009 passava, eram relutantes na sua aplicação ou então inventavam soluções “criativas” para não penalizar os crimes de violência doméstica. Por isso, a atitude parcial dos juízes do tribunal de recurso não nos surpreende, fomos habituadas/os a enfrentar essa resistência. Vejamos então com maior detalhe o Acórdão que temos vindo a referir:
• Consideram que foi inusitado e constitui má prática o facto do exame pericial ter sido feito em casa da queixosa e somente 30 dias depois dos factos ocorridos;
• Entendem que havendo desentendimento entre um médico legista contra outro médico legista e quatro especialistas em oftalmologia sobre se a lesão no olho foi ou não provocada por objeto perfurante, termo devidamente esclarecido em sede de tribunal (o que neste caso ilibaria o réu da lesão no olho, uma vez que a agressão foi cometida com a mão), fica desvalorizada a prova apresentada pela defesa da queixosa;
• O médico legista discordante nunca examinou a vítima Josina Machel, mas opinou apenas com base nos relatórios dos restantes especialistas, tendo estes concluído ser o resultado compatível com a agressão;
• Interpretam as mensagens trocadas no celular entre o réu e a queixosa, pedindo desculpa pelo acontecido, como simples “boa educação” e não como admissão de culpa por ter havido agressão, como pretende a defesa;
• Desqualificam a acusação de violência psicológica por não haver testemunhas e ser “a palavra do réu contra a queixosa”.
Em resumo, dizem estar perante uma “dúvida insanável” sobre a culpa do réu, pelo que resolvem a favor deste como manda o direito, ilibando-o.
Perante isto, temos nós, organizações da sociedade civil, desacordos profundos (ou insanáveis?) com a decisão do tribunal de recurso.
Antes de mais, o tribunal ignora ou deprecia alguns aspectos:
• Quer no Hospital Central quer no Hospital Agarwal, Josina sempre referiu ter sido agredida e no Hospital Central apontou o dedo para o agressor que estava presente, razão porque foi logo chamada a polícia da esquadra daquele estabelecimento;
• Por sugestão da psicóloga, a perícia legal foi feita na privacidade da residência da queixosa, para evitar maiores traumas;
• Foi realizada a referida perícia somente depois da queixosa ter regressado de uma viagem ao estrangeiro por motivos médicos, em que buscou assistência para a sua lesão, ou seja, depois de cerca de um mês;
• Foi obrigada a queixosa a meter queixa nessa altura, uma vez que o processo aberto no dia da agressão pela polícia “desaparecera” misteriosamente e este é até ao momento um enigma “insanável”;
• A violência doméstica ocorre sempre entre portas e na maior parte dos casos sem testemunhas, aliás, essa é uma das suas características marcantes; assim, ao decidir usando esse argumento, os juízes do tribunal de recurso minam e enfraquecem a base legal que sustenta todo o enquadramento destes crimes, tornando daqui para a frente mais difícil ainda levar um caso desta natureza a tribunal, passando para todas as mulheres que sofrem dessa violência íntima, insidiosa e camuflada a mensagem de que não se devem atrever a denunciar se não tiverem testemunhas, não chegando apresentar as lesões como prova;
• O réu, em tribunal, argumentou que não pretendia causar a lesão no olho, matéria irrelevante à luz da lei; ora, tendo havido agressão, mesmo que não provado que a mesma provocou a perda do olho da queixosa, como pode ter sido inocentado o réu?
Será que os juízes em causa acham que “violência doméstica é amor”, que “entre marido e mulher não se mete colher” ou que os homens têm o direito de “educar” as suas esposas ou companheiras por meio de agressões físicas e verbais?
Perante isto e ainda sob o signo da comemoração dos 45 anos da independência nacional, perguntamo-nos que justiça é servida às mulheres? Que direitos são os seus? A libertação que veio com a independência foi só para os homens? Precisamos que nos expliquem: como se
pode ser livre temendo constantemente pela sua integridade física, moral e sexual e pela sua vida?
O desserviço que os juízes provocaram aos direitos das mulheres é um marco tenebroso e indigno, merecendo por isso, o repúdio e indignação de toda a sociedade em defesa do Estado de Direito e do primado da Lei, que são valores inalienáveis do Estado que vamos construindo para que as promessas de Junho continuem a brilhar para todas e todos Moçambicanas/os.
Por tudo isto, nós, organizações da sociedade civil, anunciamos que continuaremos a luta por outros meios, para que justiça seja feita a Josina Z. Machel e a todas as mulheres que sofridamente e de forma discreta são alvo de agressões e vexames diários por parte de quem deveriam receber apoio, ajuda e solidariedade. Já marchamos em defesa de uma lei.
Voltaremos para as ruas para defender o que já conseguimos.
Aproveitamos a ocasião para denunciar igualmente todas e todos que, no espaço público, sem conhecerem a realidade dos factos, se limitam a repetir afirmações enganosas disseminadas pela defesa do réu, e dando vazão aos seus próprios preconceitos e à discordância que têm com o princípio da igualdade de género. Por exemplo, fazendo eco aos argumentos da defesa, alguns comentadores/as repetem que o caso já foi julgado na África do Sul, tendo o réu sido inocentado. O que na realidade aconteceu foi que Josina Z. Machel, face ao assédio que continuava a sofrer do seu agressor, pediu uma providência cautelar para se proteger. Mais ainda, não tinha porque um tribunal sul-africano julgar um crime ocorrido em território moçambicano. Este “erro de interpretação” foi propositadamente disseminado nas redes sociais e continua a ser repetido como se de uma verdade se tratasse, para denegrir a queixosa e inclusivamente os seus familiares, num ataque pessoal e grosseiro.
Queremos comunicar que não pararemos e que lutaremos até ao fim por justiça! Pedimos a solidariedade de todas as mulheres e todos os homens de bem para a nossa demanda de justiça, de igualdade e de solidariedade. Não se trata de defender um caso, mas sim uma causa.
Enquanto houver mulheres que sofrem de violência nas suas casas com a cumplicidade de todas e todos que fecham os olhos, a independência e a liberdade ainda não terão chegado.
Viva a justiça! Viva a igualdade! Viva a liberdade
Maputo, 3 de Julho de 2020
Parceira de Cooperação:
ALIADAS – Women’s Voice and Leadership Mozambique