Nampula
Chamo-me Ema Bachir Boane, tenho 53 anos de idade, sou divorciada e tenho seis filhos: quarto meninas e dois rapazes. Sou membro da Associação Filipe Samuel Magaia e presidente da Associação. Sou presidente da Associação há 4 anos.
A minha história como membro da associação começa quando eu fiquei desempregada. Eu trabalhava e depois fiquei desempregada, fiquei em casa. Como não estava a fazer nada e não me sentia bem assim, decidi entrar para um grupo de mulheres de xitique. No grupo, havia uma mulher que era membro de uma Associação. Isto interessou-me e disse-lhe que eu queria entrar para a Associação. Ela levou-me e apresentou-me ao Conselho de Direcção. Preenchi os documentos e requisitos, paguei a taxa de membro e comecei a exercer actividades como membro. Com o andar do tempo, o meu marido começou a criar-me problemas, dizia que não me queria ver na Associação. Ele achava que não ia para a Associação, mas que andava a encontrar-me com outros homens. Eu disse-lhe que não, que eu tenho de trabalhar na Associação porque quando eu trago comida para casa todos comem. Para além disso, ele trabalhava e eu nunca o proibi de trabalhar. O assunto arrastou-se até que chegou na família. Debateu-se e ele acabou por aceitar que eu continuasse a trabalhar na Associação. Em 2015, realizou-se a Assembleia eleitoral. Eu concorri e elegeram-me como Presidente da Associação.
Eu gosto muito da Associação porque ser membro ajudou-me muito, muito, muito mesmo. Hoje, para além de ser membro dos órgãos sociais, tenho a minha casa própria, bem recheada. Consegui casa própria, formar meus filhos, um está na Saúde, dois são professores, todos são licenciados, embora eu não tenha estudo muito. Consegui isto tudo graças à Organização, graças ao facto de ser membro e ser camponesa. No início, éramos muitas mulheres na Associação, mas muitas tiveram problemas com os maridos e abandonaram. Eu tentava mobilizá-las para ficarem e conversarem com os seus maridos, tentar convencê-los que ser membro ajuda muito, mas nem sempre consegui. Eu já conheci muitos lugares graças à Associação. Hoje não compro arroz, amendoim, etc. Tiro da minha machamba e vendo os excedentes.
Quando o presidente da Associação faleceu e eu fui eleita para presidente tive vários problemas na Associação. A comunidade invadiu os nossos terrenos, para vendê-los a outros ditos investidores. Temos terras de sequeiro e terras na baixa. Alguns membros traíram-me, pois não me respeitavam por ser mulher e acharem que não seria capaz de dirigir a organização. Com relação às usurpações dos nossos terrenos, apresentei a questão ao Conselho Municipal, bem como ao Chefe do Posto. Estes foram falar com a comunidade, mas não conseguiram resolver o problema. Assim sendo, apresentei o problema ao STAE e estamos à espera da resolução. Entendo que o problema é por eu ser mulher e eles não querem uma mulher na frente da organização, mas eu mantenho-me firme e enfrento a situação. Caso seja necessário, eu vou colocar o problema no tribunal. Nós temos DUAT por 40 anos, portanto a terra é nossa, ainda não passaram 40 nos de exploração. Há muitas pessoas que ainda desprezam as mulheres, não pensam que ser mulher é ser uma pessoa igual a eles. Nem todos aceitam ter uma mulher em postos de liderança.
Acho que estão a tentar desvalorizar-me, mas mesmo assim, eu não tenho medo. Enfrento as pessoas e até pergunto “quem você pensa que é?”. Dizem “Samora Machel morreu…” Eu respondo dizendo que não tenho medo da morte. Se vocês acham que com a minha morte resolvem o vosso problema, estão enganados, isto é uma Associação, mesmo que eu morra, outra pessoa tomará o meu lugar e a mesma posição. É um bem colectivo e não individual.
Estou separada do meu marido desde o ano passado. Ele trabalhava. Quando perdeu o emprego, começou a fazer negócios. Deslocava-se muito para Quelimane, onde ficava longo períodos de tempo. Começou a relacionar-se com uma outra mulher. Eu não gostei e decidi separar-me dele. Quelimane é uma zona onde há muitos problemas de doenças de transmissão sexual. Separamo-nos e eu mudei-me para a minha casa que construí. Deixei-o porque também não ajudava em casa, deixou de comprar comida, ficava um ano sem aparecer em casa, só ligava. Com relação aos direitos das mulheres, o que me marcou muito muito é o facto de eu, como mulher, enfrentar um grupo de pessoas, durantes estes quatro anos, sempre progredindo, sem recuos. Mostrou-me que tenho capacidades de liderança, mesmo para enfrentar os homens.
O que me marcou é a responsabilidade que eu tenho e capacidade de enfrentar um grupo de 33 pessoas. Quando me elegeram, eu quase chorei, pensei que não ia conseguir exercer bem o cargo, mas agora já estou acostumada, já sei fazer meus planos, já tenho coragem, sinto que já tenho capacidade. Mesmo quando sofremos esse problema de invasão, sentei e pensei, eu hei-de morrer, mas reconheci que eu é que sou a responsável e os outros acompanham-me, isso encheu-me de coragem e isso marcou-me.
Sinto e percebo que ser membro e Presidenta da Associação é o meu ganha pão. Saber que as pessoas confiam em mim, faz-me perceber que não posso enfraquecer, vai ser mal visto por ser mulher, por isso eu tenho de mostrar toda a minha força e que eu sou capaz. Como sei que a mulher tem direitos, esta minha atitude faz-me sentir orgulho, liberdade. A mulher que não sabe que as mulheres têm direitos, talvez não sinta essa força, trabalha com medo, mas eu não, eu sei que a mulher tem o direito de trabalhar, de assumir qualquer cargo, tem o direito de tomar decisões, por isso eu trabalho com força. Para mim, no âmbito da luta dos direitos das mulheres em Moçambique, o que conseguimos de mais importante é o empoderamento das mulheres. Embora não atingimos os 100%, gostei muito. Empoderamento da mulher é a mulher conseguir decidir por ela, fazer o que ele acha que é capaz de fazer, não permitir que outras pessoas decidam ou escolham por ela. Ter a liberdade. Há homens que ainda não aceitam essa liberdade, apesar de tantas lutas que fazemos, por isso ainda não alcançamos os 100%. Por isso vamos continuar a lutar até atingirmos o nível que nós queremos.
Desde que eu estou como presidente na minha Associação, o que mudou com relação aos Direitos das Mulheres é que nos encontros eu leio os estatutos e faço ver que todos temos os mesmos direitos, homens e mulheres, e vejo que há mudanças. Aos poucos vão aceitando o que as mulheres querem. Por exemplo, antes a maior parte dos membros dos órgão sociais eram homens só, depois, quando se fizeram as listas para concorrer, eu disse que não podiam ser somente homens, as mulheres tinham, também, de entrar na listas. As mulheres têm o direito de votar e de serem eleitas. Em resultado disso, neste momento nos órgãos sociais temos 4 mulheres e 3 homens. Vejo que estão a aceitar, embora algumas digam que não são capazes. Eu sempre incentivo, dizendo que todas as pessoas aprendem fazendo. Temos tesoureiras, conselheiras, membros do conselho fiscal, secretárias mulheres.
Nesta nossa luta pelos direitos das mulheres, o que falta mudar é a ajuda dos homens nos trabalhos domésticos. Muitos homens não aceitam ajudar as mulheres em casa, principalmente na zona rural. É preciso fazer trabalho nesse sentido para mudar. Na minha associação, acho que em algumas situações, os homens rejeitam o que digo. Se eu fosse fraca, a associação não avançaria. Ainda não estão convencidos que uma mulher pode liderar.
Na minha comunidade, vejo às vezes os homens a humilharem as mulheres, o casal luta na rua. Às vezes eu falo com eles e digo que todos os casais têm problemas, mas não podem lutar na rua. Resolvem-se os problemas dentro de casa. Houve um caso de uma vizinha minha que estava casada e o marido resolveu arranjar outra mulher. Ele começou a levar as coisas de casa desta primeira mulher para a casa da segunda. Ela chamou-me e apresentou-me o caso. Eu fui ter com o marido e disse-lhe que não devia fazer isso. Que devia é trabalhar para sustentar e equipar a sua nova casa e não levar as coisas da casa da primeira mulher para a casa da segunda. Disse-lhe também que se insistisse em fazer isso e a sua mulher apresentasse o caso nas instituições competentes, ele iria perder a razão. Ele parou.
O meu grande sonho é nas próximas eleições concorrer para os órgãos Sociais da União Distrital, aprender mais e ter mais experiência. Quero tentar conseguir deixar a minha marca lá. Todos queremos progredir, eu também quero progredir, quero ver se aqui onde estou melhoro.
Este contexto de COVID-19 é para mim uma situação muito triste. Às vezes, quando quero pensar no futuro, fico com dúvida se chegarei a esse futuro. Fico em casa com os meus filhos, aconselho-os, bem como aos membros da Associação, embora haja os que não acreditam que a doença exista, pensam que é política. Não usam a máscara, mas eu insisto para que cumpram com as normas que o governo determinou. Temos de cumprir. Sensibilizo e exijo que, quando estamos nos encontros, devemos cumprir com o distanciamento social, usar a máscara e lavar as mãos com sabão. A protecção não é só para uma pessoa, é para cada pessoa, sua família, vizinhos, comunidade. Quando uma pessoa se infecta, é um perigo para todos. Trabalhamos porque é preciso trabalhar, se não trabalharmos vamos morrer de fome, mas com responsabilidade e com a consciência no lugar. Os tempos que estamos a viver são muito difíceis, perigoso. É uma doença que está a fazer muitas vítimas no país e no mundo. Eu vou à machamba com medo, mas não posso parar, tenho de trabalhar. É o meu sustento. Ceifei arroz neste contexto de pandemia, agora estou a programar para ir tirar mandioca, sempre usando a máscara. Toda esta situação provoca-me um sentimento de tristeza. Como muita gente pensa, eu também penso que se calhar isto é o fim do mundo, mas também penso que ninguém sabe se é ou não, Deus é quem sabe qual o nosso destino. Na minha zona, até agora não temos problemas de conflitos armados. Com esta pandemia, as pessoas pouco saem de casa, não acompanhei nem prestei atenção se a violência contra as mulheres está a aumentar ou a diminuir. Não sei. Mesmo a vizinha, vejo de vez em quando, não todos os dias. Há muita gente que não acredita na doença, reclamam que o governo está a impedir as pessoa de trabalhar. Acham que lavar as mão é só quando se vai comer. Eu tento sensibilizar e dizer que o governo não trouxe a doença, é um problema mundial. O governo, pelo contrário, está a tentar proteger-nos. Eles dizem que toda a gente vai morrer e que, por isso, não devia haver restrições. Eu pergunto, a ser assim, quando você fica doente, porque é que vai ao Hospital e não fica em casa para morrer? Temos de tentar cumprir as normas para não matar os outros, já que você quer morrer. As pessoas acreditam muito na religião que diz que Deus é quem determina o destino de cada pessoa. Mas eu digo sempre que não é assim, nós também temos de fazer a nossa parte. Vamos deixar de ser ignorantes. É por essa razão que aqui em Nampula os índices de contaminação são mais altos que em outras províncias. Um dia destes discuti com alguém no chapa. Ele não estava a usar a máscara. Eu perguntei-lhe porque é que não estava a usar a máscara, quer matar-nos? Ele respondeu que tinha a máscara, mas que estava no bolso. Eu disse-lhe que as pessoas como ele, que não usam a máscara, principalmente no chapa, deviam ser levadas à esquadra da polícia. Gerou-se uma discussão. Todas as pessoas começaram a reclamar, até que ela acabou por colocar a máscara. Gostaria de desejar às outras mulheres força, não se podem cansar. Uma pessoa não se cansa enquanto não conseguir o que quer e procura. Mesmo com os diversos problemas que nós as mulheres sofremos, humilhação, violência, etc, temos de gritar: isto não queremos, queremos assim. Havemos de conseguir o pouco que queremos. Na avaliação do projecto AgriMulheres, disse que nós precisamos de projectos sobre Direitos Reprodutivos e Sexuais. Nas zonas rurais, as mulheres são obrigadas a tere filhos consecutivos e muitos. Elas não podem dizer que já não querem ter mais filhos. Os homens dizem que elas não podem comer a “chima” deles em vão, têm de fazer filhos. Encontramos mulheres com uma criança pequena e grávidas.
Maputo, 21 de Julho de 2020
Entrevista por Joana M. M. Ou-chim (1) .
Fotografias de João Albano Zeca Anibal.
(1) Joana M. M. Ou-chim é consultora na área de género e desenvolvimento em Moçambique.