REVISTA AFECTOS E MEMÓRIA
HISTÓRIA DE MULHERES ALIADAS (E UM HOMEM) NUMA AVENTURA FEMINISTA TECH
Março: o inicio da jornada
Solange em viagem de trabalho em Maputo encontra Fidélia e Valuarda para criarem o futuro processo de formação feminista e reflexão TOC e MEL. Fi e Val são feministas que estão a gerir o programa feminista WVL-Aliadas com o recurso de um governo pró-feminista canadiano. Combinação poderosa e grande oportunidade! Sol, que é feminista brasileira, foi da equipa do baseline e mapeamento na fase inicial do Programa Aliadas. Estava a ler a tese de PhD da Catarina porque foi convidada para ser júri na sua defesa de doutoramento. Sol conhece Cat, mas nunca se encontraram. Chegam os ventos índicos anunciando que aquele COVID-19 da distante China, que estava a fazer chorar a Europa, agora ameaçava chegar às nossas vidas no sul da África. Sol facilitaria a primeira actividade programada para dali a 5 dias … que foi adiada por causa do COVID-19. Aeroportos e fronteiras vão fechar, corre Sol pra casa na África do Sul. E agora? Val e Fi, com a experiência de serem feministas, dizem “vamos nos adaptar e criar oportunidades”. Sol, Val e Fi: tchau, se cuida, seguimos falando. Semanas de adaptações depois… |
BOOTCAMP PILOTO: REFLEXÃO FORMATIVA SOBRE O USO DA TECNOLOGIA
A história que narramos na primeira parte desta edição mostra como a Aliadas em Movimento foi criada como resposta às imposições do COVID-19, para ser uma plataforma feminista que visa fortalecer dinâmicas do feminismo em Moçambique e ser um espaço seguro de partilha, cuidado, desabafo e aprendizagem entre os colectivos parceiros do projecto Women’s Voice and Leadership ALIADAS (WVL – ALIADAS).
Foi com o objectivo de apresentar, testar e aprender a usar esta plataforma, assim como debater sobre os usos das tecnologias por parte das mulheres (seus desafios e possibilidades), que se realizou entre os dias 29, 30 e 31 de Julho o primeiro Bootcamp Tech do Aliadas, totalmente online. O evento contou com a participação da equipe técnica de criação da plataforma, da equipe do Aliadas e teve como público alvo as parceiras de implementação e amigas críticas do projecto. Os três encontros tiveram cerca de duas horas de duração, ligando várias partes de Moçambique ao Brasil e à África do Sul.
Chamamos Bootcamp a uma acção concentrada com várias actividades. No nosso caso, o Bootcamp representa um encontro virtual para fins educativos e reflexivos do Programa Aliadas. Aguardem os próximos encontros em Setembro e Outubro |
Durante os três encontros, as parceiras tiveram a oportunidade de interagir com a equipe técnica e umas com as outras, de forma a conhecer a plataforma em todos os seus detalhes, explorar as diferentes secções e espaços de interação e experimentar as suas potencialidades e ferramentas. Foram dias de bastante aprendizado, de tirar dúvidas, de conhecer ao pormenor esta plataforma e as suas potencialidades e, principalmente, de discutir formas de a melhorar, tornar mais acessível e acolhedora.
O encontro, além de educativo e reflexivo, possibilitou que as participantes realizassem vários exercícios de balanceamento de energia, inspirados nas técnicas orientais de Qi Gong e Jin Shin Jyutsu, que foram muito bem vindos. Pudemos também festejar, cantar, declamar textos e poesia e festejar este que é um espaço seguro e de cuidado, onde todas estão juntas.
As participantes tiveram a oportunidade de responder a uma pesquisa de opinião realizada no início e no final do nosso primeiro Bootcamp. Uma parte das perguntas requeria que as participantes dessem respostas de 0 a 10 (em relação ao nível de conhecimento sobre temas específicos) e a outra que respondessem por extenso. Os resultados referentes à pesquisa no primeiro dia mostraram que a maior parte das participantes tem um conhecimento médio de tecnologias, tem um nível de conhecimento acima da média em relação ao projecto Aliadas e sobre o feminismo em Moçambique. Em relação às potencialidades de aprendizagem com o Bootcamp e o website, as participantes manifestaram o desejo de não só aprender a usar as tecnologias em todo o seu potencial – como ferramenta para um melhor e mais forte e coeso activismo feminista digital -, mas também trocar experiências e conhecer melhor os trabalhos umas das outras.
No final do nosso Bootcamp, voltaram a fazer-se as mesmas perguntas com respostas de 0 a 10, tendo os resultados sido ligeiramente diferentes dos iniciais. As participantes mostraram ter adquirido um pouco mais de conhecimento acerca das tecnologias, assim como acerca do projecto e do feminismo em Moçambique. O que mais tocou as participantes, em relação ao Bootcamp, foi o interesse de todas pelo uso das tecnologias e a quebra de barreiras no seu uso, a união das mulheres, a criatividade da equipe que criou o site e as ferramentas disponíveis nele e a partilha de experiências. Em termos de aprendizado, as participantes relataram ter percebido o poder das tecnologias para o dia a dia do activismo, assim como a força da união entre as mulheres e a troca de experiências. Em relação ao que pode ser melhorado, as participantes mencionaram a necessidade de maior prática e testagem da página, assim como uma atenção especial às companheiras que apresentam maiores necessidades de acesso a estes meios e que requerem literacia digital.
No primeiro dia, depois de cada participante se apresentar e falar um pouco de si – e de termos sido guiadas pela Solange Rocha, coordenadora da equipe técnica, em alguns exercícios de respiração e auto-conhecimento do corpo -, a Fidélia Chemane, directora do Programa WVL-ALIADAS, fez uma apresentação da plataforma e de como surgiu a ideia de a criar. Facilitado pela Solange, seguiu-se um debate sobre o nosso conhecimento das tecnologias, quais as dificuldades e expectativas em usar a plataforma, assim como sobre os significados de uma interacção e criação de espaços de reflexão no virtual.
As participantes destacaram as vantagens e potencialidades do virtual, nomeadamente a possibilidade de conectar mulheres de diferentes países ou províncias e de tornar visível o trabalho de cada colectivo. No entanto, a qualidade dos meios tecnológicos e dos recursos para aceder a eles, assim como os custos de internet e a dificuldade de acesso, foram obstáculos destacados. As parceiras destacaram a importância da plataforma na disseminação de informação, nomeadamente o histórico das organizações da sociedade civil moçambicana e a linha de tempo com os principais marcos do movimento, assim como a facilidade de acesso a várias produções feministas moçambicanas. A imagem da plataforma, colorida e acolhedora, foi também destacada.
O fim deste primeiro dia de encontro foi agraciado com a declamação de uma poesia de José Régio intitulada Cântico Negro, pela Valuarda.
O segundo dia do nosso Bootcamp, facilitado por Catarina Trindade (membro da equipe técnica da plataforma), centrou-se num importante debate acerca do poder das tecnologias para as mulheres e contou com a participação de três profissionais cujas trajectórias estão ligadas ao mundo tech, nomeadamente Shaísta de Araújo, do MuvaTech, Alessandra Paes (web designer) e Aieda Freitas (programadora), integrantes da equipe técnica da plataforma.
Além de partilharem as suas trajectórias e falarem das possibilidades e desafios que o mundo tech oferece às mulheres, as três convidadas animaram o debate sobre como as ferramentas tecnológicas podem fortalecer o trabalho das organizações parceiras, ajudando a dinamizar as suas actividades, fortalecer o activismo feminista digital e a partilha de boas práticas e desafios. Admitindo o poder e importância que as tecnologias têm actualmente, e como estas têm vindo a modificar a forma como nos movimentamos, algumas das participantes partilharam as suas preocupações em relação ao facto de Moçambique ser um país com muitos desafios no que respeita ao acesso a estes meios. A falta de conhecimento sobre o uso das tecnologias – aliada a uma fraca e limitada educação básica – dificulta o processo de aprendizagem, principalmente para as mulheres, o que é agravado pelo custo dos dispositivos (celulares, computadores, entre outros) e do acesso à internet, sem contar que boa parte das moçambicanas não tem acesso à electricidade, essencial no uso destas ferramentas. Os desafios aumentam consideravelmente nas zonas rurais.
Para as participantes, pensar no uso de tecnologias e ferramentas digitais mais acessíveis que permitam às mulheres não apenas fazer activismo digital, mas também estarem mais conectadas e ouvir as vozes de outras mulheres, implica na mobilização por direitos e políticas públicas em termos de acesso à internet e meios tecnológicos. É uma oportunidade para os colectivos de redesenhar planos de advocacia pelos direitos das mulheres que incluam o seu direito de acesso à internet, assim como em formas de apropriação destas ferramentas nas formas de actuação dos diversos colectivos. Lutar, pressionar e advogar por estes direitos significa tornar acessível às mulheres informação sobre os seus direitos, sobre situações de violência e expô-las cada vez mais a uma rede de apoio entre mulheres de origens e trajectórias diversas.
O terceiro e último dia do nosso primeiro Bootcamp começou com uma pequena apresentação de Valuarda Monjane, gestora de reforço institucional do WVL-ALIADAS, sobre a importância desta plataforma e de como ela pode ser um espaço importante de trabalho colectivo. O tempo restante foi dedicado a uma reflexão sobre os dois dias anteriores, destacando-se os principais desafios e possibilidades do trabalho em plataforma, assim como a uma maior prática das ferramentas da plataforma, de forma a percebermos o que funciona, o que precisa ser melhorado e quais as principais percepções das participantes em relação à utilidade da plataforma. Foi pedido a cada participante que entrasse na página e explorasse as suas diversas ferramentas e secções, assim como que preenchesse uma pesquisa de opinião e partilhasse o que aprendeu e como podemos melhorar a plataforma. A maior parte das participantes elogiou bastante o espaço virtual, destacando o seu visual, a sensação de acolhimento, a sua utilidade e poder. Foi destacada a necessidade de tornar a página acessível e inclusiva para pessoas com deficiência, algo bastante importante.
Como não poderia deixar de ser, os nossos três dias de reflexões, partilhas e aprendizagens foram encerrados com uma apresentação de talentos, onde a Valuarda declamou brilhantemente um poema de Noémia Souza intitulado Deixa Passar o Meu Povo, e uma activista da ASCHA emocionou a todas com a narração de uma história. Para além disso, tivemos direito a um pequeno momento de descontracção, regado a música e dança e a um brinde a todas as mulheres maravilhosas que aceitaram juntar-se a esta aventura!