Ancha Rute

Nampula


Eu chamo-me Ancha Rute, tenho 36 anos, sou casada, só tenho uma filha que já concluiu a 12ª classe. Sou camponesa, trabalho na minha machamba e faço pequenos negócios. Sou membro da Associação Filipe Samuel Magaia e sou Presidente da União Distrital de Nampula.

A minha história como membro da Associação começa quando eu decidi que queria fazer machamba. Para conseguir, filiei-me a uma associação. Depois de ser membro, recebi a minha parcela de terra individual para fazer as minhas actividades e havia a parcela comum onde todos trabalhavam nela. Estando na Associação, eu tinha de cumprir com as normas e regulamentos dos Estatutos, bem como usufruir dos direitos e cumprir com os deveres dos membros. Participava nos encontros, e quando faltasse, eu tinha de justificar. As vezes que faltei foi por estar doente ou ter a criança doente. Eu era muito cumpridora e foi por isso que quando concorri, a Assembleia elegeu-me como vice-presidente da Associação. O Presidente eleito era um pouco velho, por isso eu era quem fazia a maior parte das actividade de direcção sob a orientação do presidente. Há quatro anos, em 2015, o Presidente ficou doente e faleceu e eu assumi a pasta da presidência da Associação. Nessa altura, eu fazia parte da comissão distrital que estava a criar a União distrital dos Camponeses de Nampula que preparou a Primeira Assembleia Eleitoral. Concorri para o posto de Presidente da União Distrital e consegui ser eleita. Tendo sido eleita para a Presidência da União Distrital, falei com os membros da Associação, explicando a minha situação e na necessidade de se realizar eleições antecipadas. Contribuímos e realizamos a Assembleia para eleger outra pessoa como presidente da Associação, porque eu já não podia ser. Foi assim que se elegeu a senhora Ema como presidente da Associação e eu fiquei como Presidente da União Distrital dos Camponeses do Distrito de Nampula. Já havia a União Distrital, contudo estava baseada em Rapale. Quando se fez a nova divisão administrativa e Rapale passou a ser um Distrito independente de Nampula, foi preciso criar a União Distrital de Camponeses do novo Distrito de Nampula. A anteriormente criada, em Rapale, passou a ser do distrito de Rapale.

Tive dificuldades próprias do trabalho que eu fazia na Associação, pois eu tinha de fazer o trabalho activo que o presidente não era capaz de fazer por ser idoso. No início, quando eu quis fazer machamba, o meu marido não aceitava, porque desconfiava que eu ia ter com outros homens e não ia à machamba. No primeiro ano, depois de eu produzir e o produto estar pronto para a colheita, eu levei o meu marido para ir ver a machamba. Quando chegou lá e viu o que eu tinha feito, ficou admirado, disse que não imaginava que eu, de facto, estivesse a trabalhar na machamba e grande como era. A partir dessa altura, ficou tudo bem. Mas depois, mais tarde, eu me divorciei dele e agora estou com outra pessoa. Ele não me proíbe de fazer seja o que for, aceita que eu esteja na Associação. Não sei dizer porque é que me divorciei, o meu ex-marido também não sabe dizer, talvez tenha sido o diabo que veio e destruiu o meu casamento. O meu sentimento em relação às conquistas, sinto-me uma mulher capaz, pois o meu percurso foi complexo. Sinto o peso da responsabilidade que tenho, mas como trabalho em equipa, as ideias são debatidas em conjunto e as decisões são tomadas também em conjunto. Sou Presidente, mas não trabalho sozinha, tenho a colaboração dos outros membros. Desta forma temos bons resultados.

Sobre os ganhos das mulheres na batalha do Direitos das Mulheres, consigo notar que já há mulheres em postos de liderança em instituições e organizações. Hoje não é como antes. Antes uma mulher casada tinha como responsabilidade cuidar da casa e fazer filhos somente. Para uma mulher pertencer a uma Associação era difícil, sair de casa para fazer os seus negócios era difícil, ter emprego era difícil. Não era difícil por não existir, mas porque nessa altura, uma mulher casada não podia sair de casa.

Mas agora a mulher consegue trabalhar, fazer os seus negócios, pertencer a qualquer organização. Para mim, isso é muito valioso, é uma mudança para nós, mulheres. Até algumas mulheres estão em posições do topo de uma Instituição ou Organização. Já não é como antes. Essa mudança é muito importante para as mulheres. Por Exemplo: Eu estou a trabalhar e o meu marido não tem como alimentar os nossos filhos, eu posso fazê-lo. Com o pouco que eu ganho, posso comprar milho, pão, etc. Antes, havia muitos problemas no lar porque as mulheres queriam comprar capulana, roupa para si, não tinham dinheiro próprio e tinham de pedir ao marido. A mulher quer dinheiro, o marido não dá, zangam-se, discutem e agridem-se. Isso era um problema sério. Os maridos só davam dinheiro para comida, carvão. Para as outras necessidades pessoais não davam.

Mas se a mulher trabalha, não só contribui para as despesas da casa, mas também consegue comprar o que ela quer para ela própria, inclusive consegue apoiar a sua própria família. Isso reduz os conflitos entre marido e mulher. É claro que se o marido não dá, mesmo ela tendo o seu próprio dinheiro, a mulher lamenta e queixa-se, mas pelo menos ela tem o seu próprio dinheiro para fazer o que ela quiser. As mulheres passaram a ter a liberdade de fazer negócios e ter o seu próprio ganho, contudo, ela tem de respeitar o marido. Quero dizer que, apesar de o dinheiro ser meu e poder fazer o que quero com ele, não devo, por exemplo, comprar um terreno sem informar ao meu marido. Não devo gastar e fazer investimentos escondidos, sem que o meu marido saiba. Eu concordo que a mulher compre um terreno só dela, porque se por acaso a mulher morrer, a família dela pode receber o terreno como herança. Quando a mulher morre e não tem bens pessoais em se parado, a sua família não recebe nenhuma herança que tenha sido do casal, tudo que era do casal fica com o marido. Se ela tiver um terreno só dela, esse terreno fica com a família da mulher e não com o marido.

Sobre os Direitos das mulheres o que ainda nos falta é que a maioria das mulheres sejam ouvidas. Eu quando falo com o meu marido sobre qualquer questão com a qual não concordo, ele me ouve, mas ainda existem muitos homem que não ouvem as suas mulheres. As mulheres que estão nas cidades são diferentes das mulheres que estão no campo, em lugares recônditos, nas comunidades. As mulheres estão sendo violadas psicologicamente, fisicamente. Encontramos mulheres que ano sim, ano não estão a fazer filhos. Isso é violência. Nem tem tempo para ir à machamba, não consegue fazer a alfabetização por estar a ter filhos seguidos e o marido não diz nada. O que ele faz é deixar a mulher com quatro ou cinco filhos e procurar uma outra mulher mais jovem sem filhos. A mulher fica só. É uma violência. Outro aspecto é a violência física. Os homens por pequena coisa, batem na mulher. Então eu acho que nas zonas rurais é preciso fazer trabalho sobre Direitos de Saúde Sexual e Reprodutiva e sobre a violência contra as mulheres.

O meu sonho é fazer crescer a União Distrital, para que quando eu saia as pessoas saibam que quem construiu a União Distrital fui eu. Como mulher gostaria de subir e ser Presidente da União Provincial, União Nacional, participar mais em encontros nacionais do movimento, ter mais capacitações na área de liderança feminina. Eu gosto muito do movimento camponês. Esta doença que temos agora (COVID- 19) é estranha e fez parar muita coisa, muitas actividades, não só em Moçambique, mas no mundo inteiro. Mas é preciso trabalhar com vontade e unidos, para podermos vencer. Eu sinto-me insatisfeita, porque existem algumas pessoas que ignoram as medidas de prevenção e não devia ser assim. Nós todos temos de ser responsáveis a partir de casa. Existem algumas pessoas que só põem a máscara quando vêm a autoridade por perto. Não estamos a ter medo da doença, estamos a ter medo da Polícia. Isto acontece porque há pessoas que não acreditam na doença, querem ver a olho nu e a doença não se vê a olho nu.

A violência na comunidade aumentou em dado momento porque a Polícia chamboqueava ou dava bofetadas a quem não estivesse com máscara. A Polícia recolheu as crianças que andavam na rua a brincar ou a comprar comida ou outras coisas que os adultos mandavam ou a vender nos mercados.  Eu não vi, mas muita gente falou nisso. Os pais e/ou Encarregados de Educação tiveram de ir à Polícia para ir buscá-las. A comunidade reclamou, falou-se muito nisso. Na cidade de Nampula parou, mas no campo continuam a fazer. Eu acho que é muito importante cuidarmo-nos, mas não na base da violência. Nos países desenvolvidos, que têm todas as condições, a doença matou muita gente, o que será de nós, em Moçambique, sem condições, se não nos cuidarmos. Não temos hospitais adequados, não temos remédios. Acho que todos nós somos responsáveis a partir de casa até na sociedade, manter a higiene e respeitar as normas determinadas pelo Governo. Para terminar, dizer que nós, como mulheres, temos de saber compartilhar com os nossos maridos, com os nossos colegas no trabalho. Na Associação estamos em conflito, porque temos novos membros que não sabem o que é associativismo. Eles precisam de dominar o conceito de associativismo. E por fim dizer que nós mulheres temos de saber dizer sim, mas também temos de saber dizer não. Há momentos em que é sim, mas há momentos e coisas que é não. Não é não.

Maputo, 20 de Julho de 2020

Entrevista por Joana M. M. Ou-chim (1) .
Fotografias de Maia  Dionísio Lacerda.


(1) Joana M. M. Ou-chim é consultora na área de género e desenvolvimento em Moçambique.


Isabel Casimiro

Pesquisadora, académica e activista pelos direitos humanos das mulheres, Isabel Casimiro foi uma das primeiras moçambicanas a fazer pesquisas na área de género, além de ter sido a segunda a participar de um curso de género fora do país. Foi também uma das primeiras mulheres a assumir-se feminista e, como ela mesma lembra, não foi fácil, uma vez que “ser-se feminista era ser anti-homem, era ser-se considerada uma lésbica, era ser considerada uma mulher triste, sem homem, que não rapava os pêlos, desgraçada, quase que às tantas era uma puta também. Ao princípio, era muito complicado, sobretudo por eu ser branca. Porque infelizmente as primeiras a declararem-se feministas foram brancas e isto num contexto onde nem sequer 1% da população é branca e onde se diz que o feminismo é algo que vem de fora, que foi importado por essas cooperantes que vieram para cá. Então foi muito complicado. Não foi só o género que precisou de esperar até se falar nele, até ser nomeado, foi também a questão do feminismo.

Nascida em 1955 na aldeia de Iapala, na província nortenha de Nampula, foi a terceira filha e a primeira (de um total de 5) a nascer em Moçambique. Os seus pais, ele médico e ela técnica de saúde, ambos pertencentes ao Partido Comunista Português, haviam se exilado no país em 1952, após o partido ter sido declarado ilegal. Viveu toda a infância e adolescência na província de Nampula, só se mudando para Maputo em 1973, para fazer o curso de História na então chamada Universidade de Lourenço Marques . Em 1974, após concluir o primeiro ano do bacharelado, e em meio ao contexto do 25 de Abril , vai de férias a Nampula e lá é convidada a dar aulas de língua portuguesa no liceu onde havia estudado, tendo também se envolvido nas actividades da FRELIMO ao nível da província (principalmente campanhas de alfabetização). Volta em 1977 para Maputo e recomeça o bacharelado em História, que finaliza em 1979. É nessa época que se torna membro da Organização da Mulher Moçambicana e da Organização da Juventude Moçambicana (OJM). Em 1980, é contratada para trabalhar no Centro de Estudos Africanos (CEA), onde permanece até hoje como Professora Auxiliar e pesquisadora, tendo sido directora de 1990 a 1995.

Em 1982, é convidada pelo então director do CEA, Aquino de Bragança, para ser Directora Adjunta, cargo que exerceu durante um ano. De 1984 a 1986 realizou o trabalho de licenciatura em História sobre a participação da mulher na Luta Armada de Libertação Nacional, tendo assim começado o seu interesse pelos direitos das mulheres e pelos movimentos feministas. Em 1987, a convite da Fundação Ford, é a segunda moçambicana (depois de Terezinha da Silva) a participar no curso Gender and Development do Institute of Development Studies (IDS) da Universidade de Sussex, com a duração de três meses. Em 1988/89, com o apoio da Fundação Ford, fundou, junto com colegas de áreas diversas, o Núcleo de Estudos da Mulher (NEM), mais tarde rebatizado de Departamento de Estudos da Mulher e Género (DEMEG) no CEA. Ela recorda como foi desafiador começar a introduzir e a trabalhar com um conceito tão novo como o de género, porque “as pessoas quando ouviam falar de género, falavam de géneros alimentícios. Portanto, a gente explicava que quando a gente estava a falar de género nós estávamos a falar de mulheres e de homens e das relações de poder entre mulheres e homens. E foi penetrando, devagarinho.”

De 1990 a 1995, fez parte do grupo fundador, a nível regional, do Projecto WLSA, tendo mais tarde criado e sido a primeira coordenadora nacional da WLSA Moçambique (1989), da qual é, desde 2015, presidente do Conselho de Direcção. Foi (e ainda é) membro de várias organizações de mulheres, tendo participado na criação de algumas delas, como é o caso da associação Mulher, Lei e Desenvolvimento (MULEIDE) e do Fórum Mulher (do qual foi presidente de 1993 a 2001 e de 2006 a 2015). Participou, junto com um grupo de mais de 50 mulheres (e alguns homens) de organizações da sociedade civil e do governo, na Conferência de Beijing, um marco histórico na luta pelos direitos humanos das mulheres. Em 1994, por proposta do Partido Frelimo (do qual é membro), integrou a lista de deputados para a Assembleia da República, no âmbito das primeiras eleições legislativas multipartidárias, cargo que ocupou até 1999. Realizou o mestrado (1996-1999) e o doutorado (2003-2008) em Sociologia, na Universidade de Coimbra, sendo considerados os resultados das suas pesquisas importantes contribuições para os estudos de género em Moçambique.

Em 2017, Isabel juntou-se a um grande grupo de mulheres académicas, pesquisadoras e activistas de Moçambique, Brasil e Portugal para organizar o 14º Congresso Mundo de Mulheres, a realizar-se em Maputo em 2021 (depois de ter sido adiado em virtude do COVID-19). Este é um evento internacional e interdisciplinar que congrega mulheres e homens de diferentes áreas da academia e do activismo de todo o mundo, cujo objectivo principal é a criação de um espaço de debate que inclui diversos actores que reflectem e dialogam sobre as suas acções e experiências.

Além do seu activismo feminista e participação na criação de uma série de organizações de mulheres no país, possui uma vasta e importante produção académica centrada em temas como as relações de género, o feminismo, os direitos humanos das mulheres, a participação das mulheres na luta armada, os movimentos de mulheres, a pesquisa-acção, as trajectórias das organizações de mulheres e dos movimento de mulheres, a teoria de género em Moçambique, entre outros. É importante destacar a importância e relevância não só da sua produção académica feminista e das suas colegas moçambicanas, como também de mulheres de outros países africanos, principalmente os lusófonos, que raramente possuem a circulação e reconhecimento que merecem.

Para Isabel, ser feminista “significa lutar pelos direitos das mulheres, lutar pelas mesmas oportunidades num contexto de pessoas diferentes. Porque nós somos diferentes. Quaisquer que sejam as orientações, nós somos diferentes. Mas devemos ter as mesmas oportunidades, independentemente dessas diferenças. E é assim que eu me entendo como feminista, no sentido de uma sociedade solidária, uma sociedade de seres iguais.”


(1) Esta história de vida foi elaborada tendo como base uma série de entrevistas realizadas entre Maio e Julho de 2017, por Catarina Casimiro Trindade, para a sua pesquisa de doutoramento.

(2) Em 1976, a universidade passa a ter o nome de Universidade Eduardo Mondlane.

(3) O 25 de Abril de 1974, também conhecido como a Revolução dos Cravos, ocorrido em Portugal, resultou de um movimento político e social que depôs o regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933, dando início ao processo de implantação de um regime democrático e determinando o fim das guerras coloniais no continente africano.

Joana Uarapa

Sofala

Chamo-me Joana Uarapa, nasci e cresci em Chimoio, no Bairro Ketekete, tenho 56 anos, sou casada e tenho cinco filhos/as vivos: duas meninas e três rapazes. Perdi uma filha.  Eu sou a terceira filha da minha mãe e do meu pai. Tenho um irmão vivo. Éramos treze irmãos, seis mulheres e sete homens. Perdi cinco irmãs e cinco irmãos adultos/as, que deixaram filhos/as. Somente um irmão morreu em criança, o último. 

Os meus pais eram de Chimoio e eram camponeses. Eu cresci com os meus pais no bairro Ketekete. Quando eu era criança, ia à machamba, pilava, moía, cozinhava, etc. Os trabalhos de casa…eu cuidava das minhas irmãs e irmãos, mas quando eu reclamava, a minha mãe levava-me à machamba e era outra pessoa a cuidar das crianças da casa. Os meus pais eram muçulmanos, mas quando o meu pai começou a adoecer, mudou para o cristianismo. Ele faleceu sendo cristão. Eu era adolescente, ainda não me tinha casado. Eles não faziam parte de nenhum grupo comunitário, mas faziam machambas coletivas, isto é, alguns casais (mulheres e homens) juntavam-se e trabalhavam na machamba de cada casal à vez. Este trabalho de interajuda era feito somente na segunda sacha (retirar a erva daninha).  O que não me esqueci, desde criança, é de usar a capulana. Nunca me esqueci. Uma coisa de que me lembro que me fazia feliz, quando vivia com os pais, é que eu comia arroz e massa esparguete. Agora, a vida está difícil e já não como. Agora não me sinto feliz porque o meu tempo já passou, não tenho condições.

Casei-me uma única vez. Quando me casei, mudei-me para aqui, que era o terreno dos pais do meu marido. O meu marido era da tropa portuguesa em Mueda. Lá conheceu o meu irmão. O meu marido tornou-se amigo do meu irmão e em conversa manifestou a intenção de se casar com alguém de Mueda. O meu irmão disse-lhe para não casar com alguém de Mueda, porque tinha uma irmã que dava muito bem para casar-se com ele, porque era virgem, referindo-se a mim. Assim que eles regressaram da tropa, o meu marido veio falar com os meus pais para pedir a minha mão. Os meus pais aceitaram e disseram-lhe para que ele voltasse no dia seguinte para levar a mulher. No dia seguinte, ele voltou, eu tinha preparado a comida, preparado água e arrumado um quarto para nós. Ele chegou e dormiu comigo e assim ficamos casados. Eu nunca o tinha visto, não o conhecia, mas aceitei ficar com ele, porque tinha sido o meu irmão a trazer o homem. Eu confiava no meu irmão. Não fizemos nenhuma cerimónia e nem ele pagou dinheiro. Eu gostei de ter casado com ele. Eu, antes, passei pelos ritos de iniciação que duraram três dias. 

Eu não estudei, mas as minhas filhas cresceram comigo e todas estudaram, mas não sei até que classe. Os trabalhos de casa são feitos todos por mim. O meu marido ajuda a varrer, às vezes ajuda a buscar água. O meu marido é quem vende os produtos da machamba. No tempo em que produzia muito, vendia aos comerciantes feijão, milho e outros produtos a bruto, mas agora já não. Depois da venda, eu entregava o dinheiro ao meu marido. Quando eu preciso de comprar alguma coisa, peço a ele. Quando preciso de coisas para a casa, falo com o meu marido e é ele quem vai comprar, embora decidamos juntos o que comprar.

Não fazemos parte de nenhuma associação, mas o meu marido tem uma responsabilidade na mesquita, não me lembro qual é. Nós somos religiosos, vamos sempre à mesquita. Eu não faço parte de grupo comunitário.

Quando as minhas filham casaram-se, os seus maridos vieram pedir a mão delas. Não fizemos nenhuma festa ou cerimónia e nem pagaram nada. Mas as filhas passaram pelos ritos de iniciação de um dia. Eu é que descobri que as filhas já menstruavam e informei ao meu marido. De seguida, tratamos de organizar a cerimónia.

Não me lembro quantos anos tinha quando tive a primeira enxada. Mas lembro-me de que era pequenina e nessa altura houve um ciclone que tinha passado à noite. Comecei a ir à machamba trabalhar já era grandinha (7 a 10 anos, mais ou menos). A minha primeira enxada era usada, tinha sido do meu pai. Era uma enxada do ferreiro (de bico), comprada na loja. Dantes, vendiam esse tipo de enxada na loja. Enquanto vivi com os pais, tive enxadas usadas que eram do pai, mas quando adolescente, o pai comprou-me uma enxada nova e era de bico. 

Antes de me casar, tinha uma pequena machamba onde plantava milho e mandioca. Quando o meu pai me dava a enxada dele, mudava o cabo, porque partia-se, mas também tinha de por um cabo para adaptá-la ao meu tamanho, mais curto, mas era direito. A enxada da minha mãe tinha o cabo direito também. Só há cerca de três a quatro anos é que eu comecei a trabalhar com enxada de argola. A minha primeira enxada de argola roubaram, esta tenho há cerca de dois anos. As minhas filhas começaram a pegar na enxada com mais ou menos três a quatro anos. Não me lembro com quantos anos as minhas filhas começaram a ir à machamba, mas iam comigo. As minhas filhas tinham enxada de bico, do ferreiro, usadas. A minha filha mais velha, antes de ir à escola, teve uma enxada nova comprada por mim. Era enxada do ferreiro (de bico). Cá em casa, é o meu marido quem escolhe o cabo, monta e afia a enxada.

Eu prefiro a enxada de argola, porque a de bico é difícil por no cabo. Eu sei por o cabo e às vezes ponho. Para produzir mais e rápido, prefiro a de argola. Eu já pensei numa enxada melhor que esta, que seria a de ferreiro. Essa enxada tem de ser leve, fácil de por o cabo, a lâmina deve ser igual à da argola como a que tenho agora. Eu sempre fui feliz com o meu casamento, mas agora estou a ficar velha. Eu era feliz quando era mais jovem com o meu marido, porque tinha uma criação de cabritos que depois roubaram.

Entrevista por Joana Ou-chim 2 .


1 Trechos da história de vida de Saminha Jahali no Projeto de pesquisas sobre o uso da enxada e as condições de genero da Oxfam Solidarité Belgica em Moçambique. Financiado pela Fundação Bill e Melinda Gate. Data da entrevista: 4 de Março de 2014 Localidade de Katapua sede, Distrito de Chiúre, província de Cabo Delgado. Entrevista feita em Macua por Joana Ou-chim com tradução de Vestina Florêncio Vololia.

2 Joana Ou-chim é consultora na área de género e desenvolvimento em Moçambique.

3 Cavar a terra usando sacho; mondar (arrancar ervas daninhas de uma plantação ou de um jardim; desbastar árvore; limpar
retirando o que é prejudicial). Disponível em: www.priberam.pt/sanchar e www.priberam.pt/mondar. Acesso em 20, julho.,2015.


Zareta Alberto


Zareta Alberto, do distrito de Gorongosa, província de Sofala (zona centro de Moçambique) é uma mulher que acredita na justiça de género e no direito de mulheres e homens viverem livres de todo o tipo de violência.

A Zareta coordena o Comité Mulheres, Paz e Segurança da Gorongosa, um grupo composto maioritariamente por mulheres, que visa reflectir e mudar crenças e comportamentos que sustentam a ausência da paz. Neste sentido, o grupo aborda as questões de paz tanto na família como nas comunidades e no país, como esferas interligadas e interdependentes de construção da paz. O Comité procura sensibilizar os homens e as mulheres para que possam mudar os comportamentos que criam também injustiças de género, como a sobrecarga de trabalho por parte das mulheres, os casamentos prematuros, a violência doméstica e a violência praticada contra as mulheres e raparigas. As mulheres membros do grupo desejam “mudar a nós e aos nossos maridos”

A Zareta tem sido uma força motivadora para as mulheres e homens com consciência de justiça de género no distrito de Gorongosa. Ela partilha recursos e formações que permitem à mulheres e homens reflectirem sobre os seus papéis de género, a distribuição de tarefas e recursos nas famílias e sobre os limites para que as mulheres possam desfrutar dos seus direitos, consagrados na Constituição da República. 

O Comité coordenado por Zareta também tem sido uma fonte para a cura de situações difíceis, vividas sobretudo pelas mulheres. Através do estudo e aplicação dos conteúdos de um manual sobre Mulher, Paz e Segurança, ao qual tiveram acesso, as mulheres membros partilham entre si como eram as suas vidas durante a guerra, fazem comparações conscientes entre o tempo de guerra e o tempo de paz, falam sobre as atrocidades cometidas, como a execução de mulheres grávidas, sobre as mulheres violadas durante a guerra e durante os períodos de paz, partilham sobre as violências que viveram, sobre os bens levados, as casas queimadas, e sobre todo o tipo de sofrimento que enfrentaram. Estas experiências oferecem aos membros do Comité um espaço seguro para falar abertamente sobre temas que criaram e criam muita dor mas, que em alguns contextos, ainda são tabus. E também um espaço que produz mudanças sociais que permitem às mulheres sonharem com famílias e comunidades livres de violência dentro e fora de casa.

A Zareta sonha que, com tempo e paciência, o Comité Mulheres, Paz e Segurança da Gorongosa possa se multiplicar por todo o distrito, com sub-comités em várias comunidades, sobretudo nas mais recônditas. O seu grande sonho é poder contribuir para mudar a vida de outras mulheres que ainda não tiveram a exposição e oportunidades que ela teve através do Comité e contribuir para criar um cenário mais favorável para as mulheres, livre de conflito político-militar, da violência doméstica e dos casamentos prematuros. 

O sonho do comité é que as condições para que haja empoderamento das mulheres chegue também às zonas onde não existe o Comité Mulheres, Paz e Segurança. Ou seja, desejam que haja uma transformação profunda das relações de poder, das normas sociais, do acesso e controle dos recursos na sociedade, que permita que as mulheres e raparigas possam decidir sobre os assuntos que afectam as suas vidas.


Zareta Alberto é coordenadora do Comité Mulheres, Paz e Segurança da Gorongosa 

História escrita por Khanysa Mabyeka, baseada numa entrevista realizada por Sylvie Desautels, em Março 2020, com o Comitê de Mulheres, Paz e Segurança de Gorongosa, no âmbito de uma pesquisa liderada pelo Gorongosa Restoration Project.

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