Conceição Osório

Conceição Osório faz parte do pequeno grupo de mulheres que primeiro se identificaram como feministas, numa época em que o conceito era mal compreendido. Para ela, a maneira como se olha para o feminismo tem melhorado ao longo dos anos, tendo em conta que “já foi pior, já foi muito pior. Isso é porque as pessoas ligam o feminismo à … mais uma vez, são as pessoas que aceitam que realmente há um mandato masculino para a dominação. Dizer-se feminista é colocar-se ao lado daquelas mulheres que queimam os sutiens, que andam todas porcas, sujas, são contra os homens, etc. Mesmo a nível regional, eu lembro-me … quem falou em feminismo a primeira vez foi a WLSA Moçambique. Quando falou em feminismo, nós fomos olhadas…eu lembro de olharem para mim e para a Ximena [Andrade] com uma cara, como quem diz, estas gajas são lésbicas de certeza. Só muito mais tarde – e para nós foi uma vitória grande – é que outras mulheres se declararam como feministas. Os homens que comandam as hierarquias emprestaram ao feminismo uma roupagem de anti-masculino e não de anti-machismo. E não de pró-direitos.”

Nascida na cidade de Maputo em 1947, filha de pais portugueses funcionários dos Correios, Conceição é socióloga, pesquisadora, activista pelos direitos humanos das mulheres e, actualmente, responsável pela área de pesquisa na WLSA Moçambique. Viveu parte da infância e adolescência na cidade de Nampula, no norte de Moçambique. A sua consciência política despertou durante os anos da universidade, em Portugal, onde fez a licenciatura (1968) e o mestrado (1971) em História e uma pós-graduação em Ciências Pedagógicas (1971). Lá, envolveu-se na luta antifascista com partidos mais radicais que estavam na clandestinidade, onde nasce a sua posição anticolonial. De volta a Moçambique em 1971, dá aulas numa escola secundária, na cidade de Maputo. Entra, junto com o primeiro marido, num movimento associativo de estudantes (mesmo já sendo formada) e ali continua a sua militância, tentando influenciar as estratégias de luta do movimento e debatendo a luta anticolonial. É durante essas acções, e por via do marido, que por volta de 1973 ingressa na FRELIMO e começa a militar clandestinamente. De 1976 a 1981, trabalhou no Ministério da Educação como coordenadora de uma comissão de apoio pedagógico ao ensino secundário, a nível nacional, que tinha como função fazer a formação de novos professores. Em 1981, entra como docente na UEM, de onde se aposenta em 2008, primeiro na Faculdade de Economia – onde funcionava também a Faculdade para Antigos Combatentes e Trabalhadores de Vanguarda (FACOTRAV), da qual foi chefe do Departamento de História – e mais tarde na Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais (UFICS). Em 1988, conclui o mestrado em Sociologia, na França, e inicia um projecto de candidatura ao doutorado, sobre sociedade, poder político e história, que não concluiu.

O seu interesse pelos direitos humanos começou por ser puramente académico. Ainda na UEM, colaborou pontualmente com a WLSA Moçambique em alguns projectos, principalmente sobre direitos de sucessões, direito à herança e formas de família, fazendo a revisão da literatura, a elaboração de relatórios e alguns capítulos das diversas pesquisas realizadas e publicadas em livro. Foi nessa altura que começou a dar-se conta da discriminação a que as mulheres eram sujeitas e a direcionar o seu interesse mais concretamente aos direitos humanos das mulheres, tendo despertado para o activismo após a participação num congresso sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos, na Universidade Federal de Santa Catarina, ao qual foi em representação da WLSA Moçambique e onde se inspirou bastante na experiência das mulheres que encontrou e com quem conviveu.

Depois de aposentada da UEM, passou a fazer parte integral da WLSA Moçambique, como coordenadora de pesquisa, onde está até hoje. Ali o seu trabalho está voltado quase que integralmente para a pesquisa, nomeadamente nas áreas de administração da justiça, poder e violência, violência contra as mulheres, poder político e eleições, representações e práticas de sexualidade, género e governação local, entre outros. Participa activamente, também, em palestras, conferências, debates e mesas redondas organizados pelas diversas organizações de mulheres no país. É na área de pesquisa que reside uma das suas maiores contribuições para o feminismo moçambicano, pois a luta pelos direitos das mulheres e pela igualdade de género requer um conhecimento profundo da condição e do papel das mulheres, para que mudanças possam ser reivindicadas.


(1) Esta história de vida foi elaborada tendo como base uma série de entrevistas realizadas entre Maio e Julho de 2017, por Catarina Casimiro Trindade, para a sua pesquisa de doutoramento.

Ema Bachir Boane

Nampula

Chamo-me Ema Bachir Boane, tenho 53 anos de idade, sou divorciada e tenho seis filhos: quarto meninas e dois rapazes. Sou membro da Associação Filipe Samuel Magaia e presidente da Associação. Sou presidente da Associação há 4 anos.

A minha história como membro da associação começa quando eu fiquei desempregada. Eu trabalhava e depois fiquei desempregada, fiquei em casa. Como não estava a fazer nada e não me sentia bem assim, decidi entrar para um grupo de mulheres de xitique. No grupo, havia uma mulher que era membro de uma Associação. Isto interessou-me e disse-lhe que eu queria entrar para a Associação. Ela levou-me e apresentou-me ao Conselho de Direcção. Preenchi os documentos e requisitos, paguei a taxa de membro e comecei a exercer actividades como membro. Com o andar do tempo, o meu marido começou a criar-me problemas, dizia que não me queria ver na Associação. Ele achava que não ia para a Associação, mas que andava a encontrar-me com outros homens. Eu disse-lhe que não, que eu tenho de trabalhar na Associação porque quando eu trago comida para casa todos comem. Para além disso, ele trabalhava e eu nunca o proibi de trabalhar. O assunto arrastou-se até que chegou na família. Debateu-se e ele acabou por aceitar que eu continuasse a trabalhar na Associação. Em 2015, realizou-se a Assembleia eleitoral. Eu concorri e elegeram-me como Presidente da Associação.

Eu gosto muito da Associação porque ser membro ajudou-me muito, muito, muito mesmo. Hoje, para além de ser membro dos órgãos sociais, tenho a minha casa própria, bem recheada. Consegui casa própria, formar meus filhos, um está na Saúde, dois são professores, todos são licenciados, embora eu não tenha estudo muito. Consegui isto tudo graças à Organização, graças ao facto de ser membro e ser camponesa. No início, éramos muitas mulheres na Associação, mas muitas tiveram problemas com os maridos e abandonaram. Eu tentava mobilizá-las para ficarem e conversarem com os seus maridos, tentar convencê-los que ser membro ajuda muito, mas nem sempre consegui. Eu já conheci muitos lugares graças à Associação. Hoje não compro arroz, amendoim, etc. Tiro da minha machamba e vendo os excedentes.

Quando o presidente da Associação faleceu e eu fui eleita para presidente tive vários problemas na Associação. A comunidade invadiu os nossos terrenos, para vendê-los a outros ditos investidores. Temos terras de sequeiro e terras na baixa. Alguns membros traíram-me, pois não me respeitavam por ser mulher e acharem que não seria capaz de dirigir a organização. Com relação às usurpações dos nossos terrenos, apresentei a questão ao Conselho Municipal, bem como ao Chefe do Posto. Estes foram falar com a comunidade, mas não conseguiram resolver o problema. Assim sendo, apresentei o problema ao STAE e estamos à espera da resolução. Entendo que o problema é por eu ser mulher e eles não querem uma mulher na frente da organização, mas eu mantenho-me firme e enfrento a situação. Caso seja necessário, eu vou colocar o problema no tribunal. Nós temos DUAT por 40 anos, portanto a terra é nossa, ainda não passaram 40 nos de exploração. Há muitas pessoas que ainda desprezam as mulheres, não pensam que ser mulher é ser uma pessoa igual a eles. Nem todos aceitam ter uma mulher em postos de liderança.

Acho que estão a tentar desvalorizar-me, mas mesmo assim, eu não tenho medo. Enfrento as pessoas e até pergunto “quem você pensa que é?”. Dizem “Samora Machel morreu…” Eu respondo dizendo que não tenho medo da morte. Se vocês acham que com a minha morte resolvem o vosso problema, estão enganados, isto é uma Associação, mesmo que eu morra, outra pessoa tomará o meu lugar e a mesma posição. É um bem colectivo e não individual.

Estou separada do meu marido desde o ano passado. Ele trabalhava. Quando perdeu o emprego, começou a fazer negócios. Deslocava-se muito para Quelimane, onde ficava longo períodos de tempo. Começou a relacionar-se com uma outra mulher. Eu não gostei e decidi separar-me dele. Quelimane é uma zona onde há muitos problemas de doenças de transmissão sexual. Separamo-nos e eu mudei-me para a minha casa que construí. Deixei-o porque também não ajudava em casa, deixou de comprar comida, ficava um ano sem aparecer em casa, só ligava. Com relação aos direitos das mulheres, o que me marcou muito muito é o facto de eu, como mulher, enfrentar um grupo de pessoas, durantes estes quatro anos, sempre progredindo, sem recuos. Mostrou-me que tenho capacidades de liderança, mesmo para enfrentar os homens.

O que me marcou é a responsabilidade que eu tenho e capacidade de enfrentar um grupo de 33 pessoas. Quando me elegeram, eu quase chorei, pensei que não ia conseguir exercer bem o cargo, mas agora já estou acostumada, já sei fazer meus planos, já tenho coragem, sinto que já tenho capacidade. Mesmo quando sofremos esse problema de invasão, sentei e pensei, eu hei-de morrer, mas reconheci que eu é que sou a responsável e os outros acompanham-me, isso encheu-me de coragem e isso marcou-me.

Sinto e percebo que ser membro e Presidenta da Associação é o meu ganha pão. Saber que as pessoas confiam em mim, faz-me perceber que não posso enfraquecer, vai ser mal visto por ser mulher, por isso eu tenho de mostrar toda a minha força e que eu sou capaz. Como sei que a mulher tem direitos, esta minha atitude faz-me sentir orgulho, liberdade. A mulher que não sabe que as mulheres têm direitos, talvez não sinta essa força, trabalha com medo, mas eu não, eu sei que a mulher tem o direito de trabalhar, de assumir qualquer cargo, tem o direito de tomar decisões, por isso eu trabalho com força. Para mim, no âmbito da luta dos direitos das mulheres em Moçambique, o que conseguimos de mais importante é o empoderamento das mulheres. Embora não atingimos os 100%, gostei muito. Empoderamento da mulher é a mulher conseguir decidir por ela, fazer o que ele acha que é capaz de fazer, não permitir que outras pessoas decidam ou escolham por ela. Ter a liberdade. Há homens que ainda não aceitam essa liberdade, apesar de tantas lutas que fazemos, por isso ainda não alcançamos os 100%. Por isso vamos continuar a lutar até atingirmos o nível que nós queremos.

Desde que eu estou como presidente na minha Associação, o que mudou com relação aos Direitos das Mulheres é que nos encontros eu leio os estatutos e faço ver que todos temos os mesmos direitos, homens e mulheres, e vejo que há mudanças. Aos poucos vão aceitando o que as mulheres querem. Por exemplo, antes a maior parte dos membros dos órgão sociais eram homens só, depois, quando se fizeram as listas para concorrer, eu disse que não podiam ser somente homens, as mulheres tinham, também, de entrar na listas. As mulheres têm o direito de votar e de serem eleitas. Em resultado disso, neste momento nos órgãos sociais temos 4 mulheres e 3 homens. Vejo que estão a aceitar, embora algumas digam que não são capazes. Eu sempre incentivo, dizendo que todas as pessoas aprendem fazendo. Temos tesoureiras, conselheiras, membros do conselho fiscal, secretárias mulheres.

Nesta nossa luta pelos direitos das mulheres, o que falta mudar é a ajuda dos homens nos trabalhos domésticos. Muitos homens não aceitam ajudar as mulheres em casa, principalmente na zona rural. É preciso fazer trabalho nesse sentido para mudar. Na minha associação, acho que em algumas situações, os homens rejeitam o que digo. Se eu fosse fraca, a associação não avançaria. Ainda não estão convencidos que uma mulher pode liderar.

Na minha comunidade, vejo às vezes os homens a humilharem as mulheres, o casal luta na rua. Às vezes eu falo com eles e digo que todos os casais têm problemas, mas não podem lutar na rua. Resolvem-se os problemas dentro de casa. Houve um caso de uma vizinha minha que estava casada e o marido resolveu arranjar outra mulher. Ele começou a levar as coisas de casa desta primeira mulher para a casa da segunda. Ela chamou-me e apresentou-me o caso. Eu fui ter com o marido e disse-lhe que não devia fazer isso. Que devia é trabalhar para sustentar e equipar a sua nova casa e não levar as coisas da casa da primeira mulher para a casa da segunda. Disse-lhe também que se insistisse em fazer isso e a sua mulher apresentasse o caso nas instituições competentes, ele iria perder a razão. Ele parou.

O meu grande sonho é nas próximas eleições concorrer para os órgãos Sociais da União Distrital, aprender mais e ter mais experiência. Quero tentar conseguir deixar a minha marca lá. Todos queremos progredir, eu também quero progredir, quero ver se aqui onde estou melhoro.

Este contexto de COVID-19 é para mim uma situação muito triste. Às vezes, quando quero pensar no futuro, fico com dúvida se chegarei a esse futuro. Fico em casa com os meus filhos, aconselho-os, bem como aos membros da Associação, embora haja os que não acreditam que a doença exista, pensam que é política. Não usam a máscara, mas eu insisto para que cumpram com as normas que o governo determinou. Temos de cumprir. Sensibilizo e exijo que, quando estamos nos encontros, devemos cumprir com o distanciamento social, usar a máscara e lavar as mãos com sabão. A protecção não é só para uma pessoa, é para cada pessoa, sua família, vizinhos, comunidade. Quando uma pessoa se infecta, é um perigo para todos. Trabalhamos porque é preciso trabalhar, se não trabalharmos vamos morrer de fome, mas com responsabilidade e com a consciência no lugar. Os tempos que estamos a viver são muito difíceis, perigoso. É uma doença que está a fazer muitas vítimas no país e no mundo. Eu vou à machamba com medo, mas não posso parar, tenho de trabalhar. É o meu sustento. Ceifei arroz neste contexto de pandemia, agora estou a programar para ir tirar mandioca, sempre usando a máscara. Toda esta situação provoca-me um sentimento de tristeza. Como muita gente pensa, eu também penso que se calhar isto é o fim do mundo, mas também penso que ninguém sabe se é ou não, Deus é quem sabe qual o nosso destino. Na minha zona, até agora não temos problemas de conflitos armados. Com esta pandemia, as pessoas pouco saem de casa, não acompanhei nem prestei atenção se a violência contra as mulheres está a aumentar ou a diminuir. Não sei. Mesmo a vizinha, vejo de vez em quando, não todos os dias. Há muita gente que não acredita na doença, reclamam que o governo está a impedir as pessoa de trabalhar. Acham que lavar as mão é só quando se vai comer. Eu tento sensibilizar e dizer que o governo não trouxe a doença, é um problema mundial. O governo, pelo contrário, está a tentar proteger-nos. Eles dizem que toda a gente vai morrer e que, por isso, não devia haver restrições. Eu pergunto, a ser assim, quando você fica doente, porque é que vai ao Hospital e não fica em casa para morrer? Temos de tentar cumprir as normas para não matar os outros, já que você quer morrer. As pessoas acreditam muito na religião que diz que Deus é quem determina o destino de cada pessoa. Mas eu digo sempre que não é assim, nós também temos de fazer a nossa parte. Vamos deixar de ser ignorantes. É por essa razão que aqui em Nampula os índices de contaminação são mais altos que em outras províncias. Um dia destes discuti com alguém no chapa. Ele não estava a usar a máscara. Eu perguntei-lhe porque é que não estava a usar a máscara, quer matar-nos? Ele respondeu que tinha a máscara, mas que estava no bolso. Eu disse-lhe que as pessoas como ele, que não usam a máscara, principalmente no chapa, deviam ser levadas à esquadra da polícia. Gerou-se uma discussão. Todas as pessoas começaram a reclamar, até que ela acabou por colocar a máscara. Gostaria de desejar às outras mulheres força, não se podem cansar. Uma pessoa não se cansa enquanto não conseguir o que quer e procura. Mesmo com os diversos problemas que nós as mulheres sofremos, humilhação, violência, etc, temos de gritar: isto não queremos, queremos assim. Havemos de conseguir o pouco que queremos. Na avaliação do projecto AgriMulheres, disse que nós precisamos de projectos sobre Direitos Reprodutivos e Sexuais. Nas zonas rurais, as mulheres são obrigadas a tere filhos consecutivos e muitos. Elas não podem dizer que já não querem ter mais filhos. Os homens dizem que elas não podem comer a “chima” deles em vão, têm de fazer filhos. Encontramos mulheres com uma criança pequena e grávidas.

Maputo, 21 de Julho de 2020

Entrevista por Joana M. M. Ou-chim (1) .
Fotografias de João Albano Zeca Anibal.


(1) Joana M. M. Ou-chim é consultora na área de género e desenvolvimento em Moçambique.


Rosalina Passora

Maputo

Chamo-me Rosalina Passora, nasci e cresci em Mueda, tenho 39 anos, não tenho filhos/as, sou casada e sou camponesa. Mudei-me para Ocua em 1984, quando casei. Tenho cinco enteado/as: três mulheres e dois homens. Cresceram comigo e depois casaram. Tenho oito irmãos/ãs vivos: um homem e sete mulheres, mas perdi quatro: duas mulheres e dois homens. Eu sou a terceira filha dos meus pais.

Os meus pais já faleceram, eram de Mueda e sempre viveram lá. Eles eram camponeses. O meu pai também era pedreiro (construtor). Os meus pais eram muçulmanos, mas eu sou cristã. Os meus pais deixaram que cada filho/a escolhesse a religião que queria frequentar. Em casa, era a minha mãe quem guardava o dinheiro, mas não sei como é que o meu pai fazia quando precisava de dinheiro. Eu passei pelos Ritos de Iniciação de dois meses antes de ter menstruado. Foi a minha mãe quem tomou a decisão de me mandar para os Ritos. Em casa, era a minha mãe quem fazia todas as tarefas domésticas. O meu pai construía a casa de banho, o quintal, tratava da casa e comprava a comida. Eu e as minhas irmãs ajudávamos a minha mãe. Eu não estudei, mas todas as minhas irmãs e o meu irmão estudaram. Tanto a minha mãe como o meu pai não faziam parte de nenhum grupo comunitário.

Casei-me em Mueda. Ele viu-me e gostou de mim, foi ter com os meus pais para pedir-me em casamento. Ele pagou 150,00 Meticais por mim. Fizemos festas e casamos pela igreja. Depois viemos viver em Ocua onde fiz os Ritos de iniciação Macua de um dia porque o meu marido assim quis (os ritos feitos em Mueda foram antes de ter o período).

Eu é que guardo o dinheiro, quando o meu marido precisa de dinheiro, pedi-me. Quando eu preciso de dinheiro peço-he e depois uso. As minhas filhas estudaram todas e os meus filhos também. As minhas filhas também passaram pelos Ritos Macondes antes de terem o período. A minha filha mais velha, casou pela igreja e o marido pagou 200,00 Meticais. Normalmente, o meu marido só vai a machamba e passeia. As vezes ajuda-me a vender a “cabanga 3 ” como é o caso de agora. Deixei o meu marido a vender para vir falar convosco. Mas, todos os trabalhos de casa são feitos por mim.

Não fazemos parte de nenhuma associação, mas o meu marido faz parte do conselho de escola. Eu faço “cabanga” e vendo. Comecei há muito tempo. Eu é que guardo esse dinheiro. Eu é que faço todas as tarefas de casa. Eu vivo com o meu marido e duas netas. Elas são pequenas e não podem ajudar.

Não me lembro quantos anos tinha quando tive a minha primeira enxada, mas comecei a ir a machamba com sete anos. A primeira enxada que tive era usada, mas não me lembro de quem era, se era da minha mãe ou se era do meu pai. Lembro-me que compraram enxada nova quando era adolescente. Eram uma enxada da loja (com argola). Foi o meu pai quem comprou. Ele foi vender castanha e depois comprou a enxada.

Depois de casada é o meu marido quem compra as minhas enxadas e sempre de argola. Nunca usei a enxada de bico. Quem escolhe o cabo, coloca na enxada e afia é o meu marido porque eu não sei fazer. As minhas filhas começaram a ir a machamba comigo aos seis anos, mas não faziam nada de especial. Elas estavam a estudar e não iam trabalhar na machamba. Eu nunca dei enxadas à elas. O cabo da enxada do meu marido é um pouco maior que a minha porque ele é homem, tem mais força. Por isso, também a minha é mais pequena. Não me lembro quando é que o meu marido comprou esta enxada. As Minhas enxadas costumam durar cerca de dois anos. Gostaria, sim, de ter uma enxada diferente, leve.

Eu vivo bem, porque o meu marido trata-me bem, quer dizer, compra-me comida, sabão, roupa, sal, caril e por isso agradeço. Ele claro que também zanga comigo e bate-me mas eu perdoou-lhe sempre. Não me lembro de nenhuma história feliz da minha vida para contar.

Entrevista por Joana Ou-chim 2 .


1 Trechos da história de vida de Rosalina Passora no Projeto de pesquisas sobre o uso da enxada e as condições de genero da Oxfam Solidarité Belgica em Moçambique. Projeto Bill e Melinda Gates. Data da entrevista: 5 de Março de 2014. Localidade Posto Administrativo de Ocua sede,
Distrito de Chiúre, província de Cabo Delgado. Entrevista feita em Macua por Joana Ou-chim com tradução de Maria de Fátima Sadique.

2 Joana Ou-chim é consultora na área de género e desenvolvimento em Moçambique.

3 Cabanga: bebida fermentada feita da folha da mandioca


Ana Laforte

Uma das primeiras e mais importantes antropólogas moçambicanas, Ana Loforte tem uma vasta trajectória no activismo pelos direitos humanos das mulheres, tendo participado em várias pesquisas, campanhas e eventos nacionais e internacionais, como a Conferência de Beijing. Ana nasceu em 1953 na cidade de Inhambane, capital da província de Inhambane, filha de um funcionário dos Caminhos de Ferro e de uma doméstica. A sua família, “produto da mistura de várias raças ou origens (negros, indianos, brancos)”, que remontam a fins do século XIX, era das mais conhecidas em Inhambane, sendo o seu bisavô comandante das terras a mando da administração portuguesa. Completada a primeira classe do ensino primário, o pai transfere-se para a então cidade de Lourenço Marques (actual Maputo), onde termina os estudos, sempre bastante incentivada pelos pais, apesar das dificuldades financeiras.

Conclui o bacharelato em História em 1975, na então Universidade de Lourenço Marques. Após a conclusão do bacharelato, começou a dar aulas de História no Curso Propedêutico de Letras e no primeiro curso de formação de professores de História e Geografia na Faculdade de Letras, para além de participar nas aulas de Antropologia do curso de História, dadas por um antropólogo português. É nesta altura que se inicia na pesquisa etnográfica, sendo convidada para assistente de pesquisa no distrito de Massinga, em Inhambane. Ainda nessa fase, foi membro do Grupo Dinamizador da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), o primeiro da universidade, como responsável pelo sector de Assuntos Sociais, “as tarefas sempre atribuídas às mulheres”. Nessa função, participou como uma das responsáveis pela Comissão Coordenadora das Actividades de Julho.

Em 1982, realizou uma pesquisa na província de Inhambane, cujo objectivo prendia-se com a recolha de informação para a elaboração do trabalho final para a obtenção de grau de licenciatura, que versou sobre o impacto do trabalho migratório dos homens para a África do Sul nos agregados familiares. É aqui que começa o enfoque nas relações de género, ao prestar atenção especial nas estratégias desenvolvidas pelas mulheres. A militância na defesa dos direitos das mulheres, a colaboração com a Organização da Mulher Moçambicana em debates organizados nos anos 1980 sobre aspectos relacionados com as culturas dos povos, ritos de iniciação e questões ligadas à poligamia, foram influências marcantes para aprofundar o seu debate sobre as relações de género. Para além disso, foi determinante a colaboração com Isabel Casimiro na organização de um encontro , na universidade, sobre a participação da mulher nas cooperativas de produção. Na articulação, para si frutuosa, entre a antropologia e o activismo feminista, iniciou uma pesquisa de doutorado, em Antropologia Social, sobre as relações de género e poder, entre 1991 e 1993, na periferia da cidade de Maputo.

Entre as actividades desempenhadas nos 35 anos em que foi docente da UEM, destacam-se os cargos de Chefe do Departamento de Arqueologia e Antropologia, durante 10 anos, e o de Directora Adjunta da Faculdade de Letras, durante 3 anos. Para além disso, coordenou vários projectos de pesquisa e foi Directora Adjunta para a área da investigação e extensão da Faculdade de Letras e Ciências Sociais. Paralelamente e fora da universidade, foi consultora da Organização Mundial da Saúde para a saúde materno-infantil, durante 5 anos; Assessora Técnica de Género do Fundo das Nações Unidas para Actividades Populacionais junto do Ministério da Mulher e Acção Social, afecta à Direcção Nacional da Mulher, durante 11 anos, cuja função principal era de formação de quadros deste sector, sobre assuntos de género e desenvolvimento, integração de género nos projectos, combate à violência contra a mulher e gestão do Projecto de Reforço da Capacidade Institucional do Ministério. Foi presidente da Mesa da Assembleia Geral e membro do board da WLSA Moçambique, durante 3 anos.

O primeiro contacto que teve com organizações de mulheres foi com a OMM, durante a preparação da sua Conferência Extraordinária em 1977-78. Havia a necessidade de preparar documentos para a conferência, designadamente o posicionamento da organização sobre questões tão controversas como o lobolo, a poligamia e os ritos de iniciação. No trabalho com a OMM e a pedido da UNICEF, participou também numa consultoria para a análise e elaboração de um relatório sobre a situação da mulher em Moçambique, do ponto de vista económico, social e político. A ligação com a OMM permitiu-lhe também fazer parte da delegação que participou numa conferência internacional da Federação Democrática Internacional das Mulheres (FDIM), realizada em Moscovo. Ainda em delegações da OMM, participou em encontros na Polónia e na Argélia. Como membro da rede de formadores do Fórum Mulher, uma rede de organizações da sociedade civil, deu (e ainda dá) formações na área de género e desenvolvimento, gender mainstreaming e género e HIV/SIDA, prestou assessoria técnica em diversas actividades, realizou capacitações a membros da rede e participou conjuntamente na integração de género nos Planos de Redução da Pobreza Absoluta (PARPA I e PARPA II) e na elaboração de indicadores de género para os Planos Económicos e Sociais debatidos nas reuniões da Revisão Anual Conjunta entre os doadores e o governo. Na MULEIDE, adaptou e elaborou o Manual de Integração de Género, numa actividade conjunta com outros países da SADC, orientou e realizou uma formação a parceiros da organização para testagem e validação do Manual e elaborou um relatório sobre Direito Costumeiro e Acesso à Terra por parte das mulheres em Moçambique.

Em 2012, já aposentada da UEM, concorre a uma vaga de coordenadora para a área de formação da WLSA Moçambique, cargo que ocupa até hoje. Assim como Conceição Osório e Terezinha da Silva, antes de ser quadro da WLSA Moçambique, participou como investigadora associada em várias pesquisas sobre direito a alimentos, heranças e sucessões e famílias e contexto de mudança. Para além de participar em vários eventos no país e no exterior, tem produzido material sobre violência doméstica, a situação da mulher em Moçambique, tradição e modernidade, género e poder, ciências sociais em Moçambique, entre outros.


(1) Esta história de vida foi elaborada tendo como base uma série de entrevistas realizadas entre Maio e Julho de 2017, por Catarina Casimiro Trindade, para a sua pesquisa de doutoramento.

(2) Seminário A Mulher na Reconstrução Nacional em Moçambique, realizado na UEM, de 17 a 22 de Março de 1986.

Máscaras de proteção para o COVID 19 – G

Máscaras de proteção contra COVID 19.

GMPIS – Grupo de Mulheres de Partilha de Ideias Prevenindo o COVID 19, gerando renda para as mulheres e protegendo pessoas vulneráveis.

As mulheres do Grupo de Mulheres de Partilha de Ideias produzem máscaras de proteção contra COVID 19 que correspendem à orientação da OMS e com preços acessíveis. O preço das máscaras é de 70 meticais. Com a pequena margem de lucro, o grupo está produzindo máscaras gratuitas para pessoas vúlneráveis, principalmente pessoas idosas.

Para fazer uma encomenda entre em contacto:

Maputo: 87 77 04 654/84 875 7821

Sofala: Beira: 84 68 26 754/84 59 15 036

Buzi: 85 24 12 333

Women’s Voice and Leadership ALIADAS ( WVL - ALIADAS)
Av. Julius Nyerere, N.º 258 Maputo, Moçambique      CP 4669

(+258) 21 48 75 52 (+258) 21 48 75 65

(+258) 84 51 08 505 (+258) 82 47 08 431

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