Joana Uarapa
Sofala
Chamo-me Joana Uarapa, nasci e cresci em Chimoio, no Bairro Ketekete, tenho 56 anos, sou casada e tenho cinco filhos/as vivos: duas meninas e três rapazes. Perdi uma filha. Eu sou a terceira filha da minha mãe e do meu pai. Tenho um irmão vivo. Éramos treze irmãos, seis mulheres e sete homens. Perdi cinco irmãs e cinco irmãos adultos/as, que deixaram filhos/as. Somente um irmão morreu em criança, o último.
Os meus pais eram de Chimoio e eram camponeses. Eu cresci com os meus pais no bairro Ketekete. Quando eu era criança, ia à machamba, pilava, moía, cozinhava, etc. Os trabalhos de casa…eu cuidava das minhas irmãs e irmãos, mas quando eu reclamava, a minha mãe levava-me à machamba e era outra pessoa a cuidar das crianças da casa. Os meus pais eram muçulmanos, mas quando o meu pai começou a adoecer, mudou para o cristianismo. Ele faleceu sendo cristão. Eu era adolescente, ainda não me tinha casado. Eles não faziam parte de nenhum grupo comunitário, mas faziam machambas coletivas, isto é, alguns casais (mulheres e homens) juntavam-se e trabalhavam na machamba de cada casal à vez. Este trabalho de interajuda era feito somente na segunda sacha (retirar a erva daninha). O que não me esqueci, desde criança, é de usar a capulana. Nunca me esqueci. Uma coisa de que me lembro que me fazia feliz, quando vivia com os pais, é que eu comia arroz e massa esparguete. Agora, a vida está difícil e já não como. Agora não me sinto feliz porque o meu tempo já passou, não tenho condições.
Casei-me uma única vez. Quando me casei, mudei-me para aqui, que era o terreno dos pais do meu marido. O meu marido era da tropa portuguesa em Mueda. Lá conheceu o meu irmão. O meu marido tornou-se amigo do meu irmão e em conversa manifestou a intenção de se casar com alguém de Mueda. O meu irmão disse-lhe para não casar com alguém de Mueda, porque tinha uma irmã que dava muito bem para casar-se com ele, porque era virgem, referindo-se a mim. Assim que eles regressaram da tropa, o meu marido veio falar com os meus pais para pedir a minha mão. Os meus pais aceitaram e disseram-lhe para que ele voltasse no dia seguinte para levar a mulher. No dia seguinte, ele voltou, eu tinha preparado a comida, preparado água e arrumado um quarto para nós. Ele chegou e dormiu comigo e assim ficamos casados. Eu nunca o tinha visto, não o conhecia, mas aceitei ficar com ele, porque tinha sido o meu irmão a trazer o homem. Eu confiava no meu irmão. Não fizemos nenhuma cerimónia e nem ele pagou dinheiro. Eu gostei de ter casado com ele. Eu, antes, passei pelos ritos de iniciação que duraram três dias.
Eu não estudei, mas as minhas filhas cresceram comigo e todas estudaram, mas não sei até que classe. Os trabalhos de casa são feitos todos por mim. O meu marido ajuda a varrer, às vezes ajuda a buscar água. O meu marido é quem vende os produtos da machamba. No tempo em que produzia muito, vendia aos comerciantes feijão, milho e outros produtos a bruto, mas agora já não. Depois da venda, eu entregava o dinheiro ao meu marido. Quando eu preciso de comprar alguma coisa, peço a ele. Quando preciso de coisas para a casa, falo com o meu marido e é ele quem vai comprar, embora decidamos juntos o que comprar.
Não fazemos parte de nenhuma associação, mas o meu marido tem uma responsabilidade na mesquita, não me lembro qual é. Nós somos religiosos, vamos sempre à mesquita. Eu não faço parte de grupo comunitário.
Quando as minhas filham casaram-se, os seus maridos vieram pedir a mão delas. Não fizemos nenhuma festa ou cerimónia e nem pagaram nada. Mas as filhas passaram pelos ritos de iniciação de um dia. Eu é que descobri que as filhas já menstruavam e informei ao meu marido. De seguida, tratamos de organizar a cerimónia.
Não me lembro quantos anos tinha quando tive a primeira enxada. Mas lembro-me de que era pequenina e nessa altura houve um ciclone que tinha passado à noite. Comecei a ir à machamba trabalhar já era grandinha (7 a 10 anos, mais ou menos). A minha primeira enxada era usada, tinha sido do meu pai. Era uma enxada do ferreiro (de bico), comprada na loja. Dantes, vendiam esse tipo de enxada na loja. Enquanto vivi com os pais, tive enxadas usadas que eram do pai, mas quando adolescente, o pai comprou-me uma enxada nova e era de bico.
Antes de me casar, tinha uma pequena machamba onde plantava milho e mandioca. Quando o meu pai me dava a enxada dele, mudava o cabo, porque partia-se, mas também tinha de por um cabo para adaptá-la ao meu tamanho, mais curto, mas era direito. A enxada da minha mãe tinha o cabo direito também. Só há cerca de três a quatro anos é que eu comecei a trabalhar com enxada de argola. A minha primeira enxada de argola roubaram, esta tenho há cerca de dois anos. As minhas filhas começaram a pegar na enxada com mais ou menos três a quatro anos. Não me lembro com quantos anos as minhas filhas começaram a ir à machamba, mas iam comigo. As minhas filhas tinham enxada de bico, do ferreiro, usadas. A minha filha mais velha, antes de ir à escola, teve uma enxada nova comprada por mim. Era enxada do ferreiro (de bico). Cá em casa, é o meu marido quem escolhe o cabo, monta e afia a enxada.
Eu prefiro a enxada de argola, porque a de bico é difícil por no cabo. Eu sei por o cabo e às vezes ponho. Para produzir mais e rápido, prefiro a de argola. Eu já pensei numa enxada melhor que esta, que seria a de ferreiro. Essa enxada tem de ser leve, fácil de por o cabo, a lâmina deve ser igual à da argola como a que tenho agora. Eu sempre fui feliz com o meu casamento, mas agora estou a ficar velha. Eu era feliz quando era mais jovem com o meu marido, porque tinha uma criação de cabritos que depois roubaram.
Entrevista por Joana Ou-chim 2 .
1 Trechos da história de vida de Saminha Jahali no Projeto de pesquisas sobre o uso da enxada e as condições de genero da Oxfam Solidarité Belgica em Moçambique. Financiado pela Fundação Bill e Melinda Gate. Data da entrevista: 4 de Março de 2014 Localidade de Katapua sede, Distrito de Chiúre, província de Cabo Delgado. Entrevista feita em Macua por Joana Ou-chim com tradução de Vestina Florêncio Vololia.
2 Joana Ou-chim é consultora na área de género e desenvolvimento em Moçambique.
3 Cavar a terra usando sacho; mondar (arrancar ervas daninhas de uma plantação ou de um jardim; desbastar árvore; limpar
retirando o que é prejudicial). Disponível em: www.priberam.pt/sanchar e www.priberam.pt/mondar. Acesso em 20, julho.,2015.